domingo, 5 de junho de 2022

Questões de interpretação

Há semanas que não falava com o padre Lodovico. Ligou-me esta manhã para me dizer que iria uns dias para o Baleal, para a casa de férias que a Companhia lá tem. Se eu quiser dar uma saltada até lá, poderíamos conversar e, porque não, ir jantar a um dos lugares interessantes que existem por essa zona. Combinámos para o próximo fim-de-semana. Depois, contou-me a sua ida a Itália. Ainda lá tenho família, acrescentou. Até tenho sobrinhos bisnetos. Eu sabia, mas tomei a informação como uma novidade. O que me apoquenta não é a morte, disse, mas a incerteza sobre se haverá um futuro para essa geração. Tudo parece tão incerto, como se o sentido com que as coisas foram investidas se estivesse a retirar delas. Olho para as coisas – comentou – e começo a não conseguir compreendê-las. É como se elas fossem apenas simples coisas e nada as envolvesse de uma aura que lhes desse, para o coração e a razão dos homens, significância. Respondi-lhe, rindo, que não era boa ideia ler tantas vezes o Apocalipse. Não brinque com coisas sérias. Às vezes, chego a pensar que aquilo que nos pode acontecer é bem pior do que uma distopia baseada numa interpretação literal do Apocalipse de S. João. O que nos vale – atrevi-me – é que não se devem ler os textos bíblicos de modo literal. Não é verdade, respondeu. Não basta interpretar esses textos de modo figurado ou de modo simbólico. O modo literal é essencial. A literalidade é uma dimensão que nunca deve ser esquecida, acrescentou. Não discuto, respondi, a teologia não é assunto que, como sabe, me interesse, e a hermenêutica é coisa para a qual não tenho inclinação. Ele riu-se e disse que tinha de se preparar para dizer Missa. A cada um as suas ocupações, pensei ao despedir-me. Pareceu-me mais animado do que da última vez que tínhamos falado, ainda abalado com a guerra, depois deste tempo de pandemia.

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