quinta-feira, 18 de abril de 2024

Quinto email

Meu caro amigo,

Reconforta-me que não tenha excluído a possibilidade de me visitar. Temia-o e ainda o temo. Não sabe se há-de ler de princípio ao fim os cadernos que Eduína lhe deixou como herança acidental. Não tenho a certeza, porém, que tenha sido um acaso, mas que deliberadamente ela quis deixar-lhe alguma coisa. Disse-me que há muito não os abre, que só em certos momentos, inspirado por alguma coisa que não identifica, pega num e o abre ao acaso e lê uma página. Eu agiria de um modo bem diferente, mas há razões para isso. Sou mulher, sou mãe de Eduína, nunca se deixa de ser mãe, e sou mais velha. A escassez do tempo que me resta e a minha condição precipitar-me-iam para devorar essas folhas que lhe foram confiadas. Estive estas semanas sem lhe escrever, para evitar criar um hábito, que me levaria a ficar à espera de uma resposta sua para lhe tornar a escrever. Enquanto namorei o meu marido, trocar correspondência fazia parte do jogo amoroso, mesmo quando não era necessário, e raramente era necessário, pois vivíamos ambos na mesma cidade, havia o telefone e encontrávamo-nos sempre que queríamos. Enviar e receber cartas era uma certificação de um amor único, singular, como todos. Era o que pensávamos na altura. Hoje não tenho essa certeza. Havia uma inclinação literária, a necessidade de ficcionar os sentimentos, os desejos, os projectos. Sentia uma volúpia quando me sentava para escrever ou rasgava o sobrescrito e me dispunha a ler a carta recebida. Os da sua geração, encharcados em psicanálise, diriam não volúpia, mas um prazer erótico. Talvez fosse. Perdi-me. Isto não o interessará e tem mais coisas para escrever do que cartas, emails, devia dizer, a uma velha louca. Diga-me alguma coisa da minha filha, como a conheceu, ou qualquer outra coisa.

 

Lívia

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