Meu caro amigo,
Reconforta-me
que não tenha excluído a possibilidade de me visitar. Temia-o e ainda o temo.
Não sabe se há-de ler de princípio ao fim os cadernos que Eduína lhe deixou
como herança acidental. Não tenho a certeza, porém, que tenha sido um acaso,
mas que deliberadamente ela quis deixar-lhe alguma coisa. Disse-me que há muito
não os abre, que só em certos momentos, inspirado por alguma coisa que não
identifica, pega num e o abre ao acaso e lê uma página. Eu agiria de um modo
bem diferente, mas há razões para isso. Sou mulher, sou mãe de Eduína, nunca se
deixa de ser mãe, e sou mais velha. A escassez do tempo que me resta e a minha
condição precipitar-me-iam para devorar essas folhas que lhe foram confiadas.
Estive estas semanas sem lhe escrever, para evitar criar um hábito, que me levaria
a ficar à espera de uma resposta sua para lhe tornar a escrever. Enquanto
namorei o meu marido, trocar correspondência fazia parte do jogo amoroso, mesmo
quando não era necessário, e raramente era necessário, pois vivíamos ambos na
mesma cidade, havia o telefone e encontrávamo-nos sempre que queríamos. Enviar e
receber cartas era uma certificação de um amor único, singular, como todos. Era
o que pensávamos na altura. Hoje não tenho essa certeza. Havia uma inclinação
literária, a necessidade de ficcionar os sentimentos, os desejos, os projectos.
Sentia uma volúpia quando me sentava para escrever ou rasgava o sobrescrito e
me dispunha a ler a carta recebida. Os da sua geração, encharcados em
psicanálise, diriam não volúpia, mas um prazer erótico. Talvez fosse. Perdi-me.
Isto não o interessará e tem mais coisas para escrever do que cartas, emails,
devia dizer, a uma velha louca. Diga-me alguma coisa da minha filha, como a
conheceu, ou qualquer outra coisa.
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