A nossa cultura, aquela que se denomina, com certa imprecisão, ocidental, é muito sensível ao tema da queda. A queda do império romano e a queda da monarquia absoluta em França são dois exemplos recorrentes do tema da queda. Todas as quedas do Ocidente se fundam em duas outras quedas mais originárias. A queda de Tróia, na vertente helénica, e a queda de Adão e Eva, na dimensão judaica. Qual destas quedas será o protótipo da queda que dei hoje ao caminhar? Ia muito meditativo na caminhada diária, com vista a acumulação de pontos cardio, até que me sinto a perder o equilíbrio, o corpo a desarmonizar-se, numa fuga para a frente, a descompassar-se, eu a ter, por instantes, a ilusão de que me iria reequilibrar, e logo a triste realidade a manifestar-se nas mãos e joelhos pregados na terra. Uma sensação de humilhação, a certeza de que o corpo nem sempre é um animal obediente. Como estava num sítio sem ninguém, deixei-me ficar sentado à espera que de recuperar do estupor que me tinha atingido. O que me preocupa, agora, não é o efeito do evento num dos joelhos, mas o enquadramento conceptual da minha queda. Ela fundar-se-á em que queda originária, na de Tróia ou na de Adão e Eva? Como foi uma queda física, parece sensato dizer que esta é uma queda herdeira da queda de Tróia. Contudo, há argumentos poderosos para recusar essa tese. A queda de Tróia foi, para nós, um acontecimento positivo. Foi o nosso lado que fez cair uma força ameaçadora. Ora, nada me fez cair a não ser eu próprio e não consigo descortinar nada de positivo no acontecimento. Isto inscreve a minha queda na linhagem da queda de Adão e Eva. Caíram pelas suas próprias mãos. No meu caso, caí pelos meus próprios pés. Com isto consigo provar que existem quedas físicas que são emanação de quedas espirituais, o que para um domingo de Verão, apesar de estarmos na Primavera, não é nada mau.
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