Talvez tudo se tenha estragado quando Milton se lembrou de afirmar que Conhecer o que está diante de nós na vida quotidiana é a sabedoria suprema. Não é claro aquilo que o poeta quer dizer com o que está diante de nós. A interpretação feita é que o que está diante de nós na vida quotidiana é essa vida quotidiana, com os seus afazeres, os nossos desejos e os nossos interesses, os nossos temores, em resumo a nossa quotidianidade. Nada de metafísica, mas a física de cada dia é o objecto da sabedoria suprema. Essa quotidianidade cresceu monstruosamente e tomou conta da vida de toda a gente. Podemos imaginar, porém, que Milton queria dizer uma outra coisa. Por exemplo, a vida quotidiana é um símbolo diante de nós daquilo que está para além dessa quotidianidade, saber interpretar o símbolo é a sabedoria suprema. O problema é que a interpretação do símbolo não será transmissível, é sempre uma interpretação existencial e privada, o que tornaria a sabedoria suprema coisa privada, não socializável e não partilhável. Por certo, não será esta a interpretação dos puritanos aos quais Milton pertencia. Querem devolver o homem à sua realidade, transformá-lo num consertador das coisas que saíram fora dos eixos e nisso estaria a sabedoria suprema. Estamos longe da douta ignorância de um Nicolau de Cusa ou do só sei que nada sei, de Sócrates. A visão de Milton vai desembocar no activismo e na mobilização geral e contínua do homem e dos materiais do mundo. Vivemos num mundo configurado pela quotidianidade miltoniana, dirigidos pela virtude puritana do calvinismo. A isto não será estranho, porém, a percepção de se viver numa crise irreparável e de se desconfiar que a sabedoria suprema se encontra em qualquer outro lugar, para o qual desconhecemos o caminho, pois não sabemos de mapa ou de bússola que nos oriente.
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