sábado, 26 de julho de 2025

Epopeia

Bocejo. A vida quotidiana é uma autêntica epopeia. Quantos ardis mais inteligentes do que o astucioso cavalo de Tróia são necessários para suportar a trivialidade que é a marca de qualquer existência. Ontem fui a um concerto. Antes de começar, tive a oportunidade de escutar quem estava mesmo atrás de mim. Tratavam da quotidianidade. Discutiam onde se podia ir buscar raparigas. Não haja confusões: queriam dizer criadas de servir, internas. Havia uma instituição com o nome de uma santa que as fornecia, mas as coisas, concordavam, já não eram como dantes. Umas servem, outras nem por isso. Eram homens — um deles já um pouco surdo — que discutiam o assunto. As mulheres estavam caladas. Imaginei que estivessem fartas do quotidiano com eles, mas é uma mera suposição. Nem lhes vi as caras. Pensei que, para eles — nascidos, como não se esqueceram de fazer notar, numa das melhores zonas do Porto —, encontrar raparigas que servissem no serviço das suas casas era uma epopeia. De imediato, ocorreu-me que, para elas, as serviçais, poderia ser uma epopeia ou um drama burlesco ter de suportar aquela gente. Podíamos pensar numa tragédia, mas raparigas que servem em casa alheia não têm estatuto social que lhes permita serem uma Antígona. Talvez nem tenham coragem para enfrentar aqueles pequeninos Creontes, dignos de uma comédia. Ter de suportar a conversa foi uma epopeia. É o que faz ir a concertos em igreja aberta ao culto: o espaço entre bancos não é suficiente para que se consiga evitar ter de escutar o chilreado de pássaros pouco canoros. Continuo a bocejar. Se alguém entender este texto como crítica social, desengane-se: constatar não é criticar, mas uma mera descrição da realidade. E esta é, por norma, trivial e bocejante — o que daria uma epopeia.

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