quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

Sem GPS

Um dia feio este vigésimo do primeiro mês do ano da graça de 2021. Neste momento, a chuva entrega-se à torrencialidade, como se fosse alguém dado a uma loquacidade imparável. Estas comparações são exercícios de quem lhe falta talento para uma boa metáfora. Ainda por cima nem são assim tão verdade. A chuva já abrandou, mas a feiura do dia mantém-se. Consta que a beleza é uma coisa passageira, o mesmo já não acontece com a feiura. É, como os diamantes, eterna. Esta comparação, recebo a notificação do homúnculo interior, é uma coisa dispensável. Que trivialidade. Bem sei, respondo-lhe, mas cultivo a trivialidade e faço do banal a casa onde habito. Os dias não têm estado simpáticos e as pessoas estão a perder-se um pouco na compreensão do que se está a passar. Também eu ando perdido, mas isso não é de agora. É a minha própria natureza. Perco-me com facilidade. Consigo inclusive perder-me no sítio onde vivo há tanto tempo. Chego a pensar que o melhor, mesmo para as viagens mais habituais, seria andar sempre com o gps ligado, embora isso seria presumir que me saberia orientar por ele. Quando chove de forma abrupta, recordo-me do pobre do Noé a andar por aí à deriva, encafuado numa arca com aquela bicharada toda. Então, temo que venha outro dilúvio, outra arca e outro Noé, mas nessa altura não estarei cá para fazer o relato fidedigno. Há coisas que me esperam.

terça-feira, 19 de janeiro de 2021

Nos recantos da existência

Os dias devoram-se uns aos outros, presos a um canibalismo ancestral e azedo. Dois terços de Janeiro já quase cumpridos e o pequeno mundo onde levo a minha pequena vida não deixou de ser um pequeno mundo onde levo uma pequena vida. Pareceu-me, ao observar de longe, que há mais recolhimento, mas talvez seja tudo por culpa do Sol e da depressão Gaetan, que estará a bater à porta, com as facécias habituais de todas as depressões. Ainda há quem vá por aí, corajoso, a dar o peito às balas, para depois contar, não sem vanglória, que sim, que vírus como este até os come ao pequeno-almoço, que é aquela expressão litúrgica que usam todos os corajosos do país que possui o QI médio mais baixo da Europa Ocidental. Basta ir comprar caramelos a Badajoz e logo se convive com uma população com um QI superior três ou quatro pontos. É o azar da geografia. Não devia escrever estas coisas, pois podem julgar que não contribuo para o nível da coisa. Claro que contribuo. Não me coube o dom da inteligência e lá tenho de arrastar a minha estupidez natural pelos recantos da existência. Na rua, há uma estranha luminosidade, esbranquiçada, como se nós estivéssemos no Inverno e o país sob o ataque de uma pandemia. Tudo falsificações da realidade, o Inverno é uma convenção demasiado humano, e a pandemia, um exercício distraído da natureza. Isto da pandemia ouvi-o há pouco e registei-o no livro imaginário onde guardo grandes frases para citar, caso se apresente a oportunidade. Quem não produz grandes frases, ao menos que cite as dos outros. Não tarda terei de ir alimentar espíritos, embora os espíritos não se alimentem, pois não têm corpo. Há que ocupar o tempo.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

As coisas são como são, ou não

A calamidade entranhou-se nos tecidos adiposos do país. Habituámo-nos a ela como nos habituamos a tudo. Está diante dos olhos, mas não a conseguimos ver. O hábito torna as coisas invisíveis. Foi o que me ocorreu ao olhar para os sites noticiosos. Também eu me tornei invisível para mim mesmo, de tão habituado que estou a ter de viver comigo. Talvez fosse isso que levou H. G. Wells a criar a personagem do homem invisível, apesar da motivação aparente ser de natureza científica. Nunca se sabe o que os artistas pensam e aquilo que lhes vai na cabeça quando criam as suas obras, inventam personagens e enredos. Na Sá Carneiro, os carros passam, passam, passam, enquanto avós mascaradas levam pela mão netos sem máscara, caminhando vagarosamente, tomadas pelo frio do entardecer, conformadas com o novo tempo. O crepúsculo galopa pela planície do dia, mas hoje não haverá fogo-de-artifício, nem horizontes de resplendor avermelhado, nem nada na paisagem fará lembrar o grande astro a mergulhar nas águas frias do oceano. Se ao menos houvesse por aqui uma tabacaria, e o Esteves estivesse à porta, então a vida pareceria normal. Assim, transeuntes visíveis passeiam cães invisíveis e as coisas são como são, ou são como parecem, ou não são uma nem outra coisa. As segundas-feiras nunca são fáceis, tornei a confirmar.

domingo, 17 de janeiro de 2021

Um Sol pouco cooperante

O Sol decidiu não cooperar com o confinamento. Agora que era preciso que se resguardasse e desse à palidez, decidiu tornar-se um belo sol de Inverno, quente, mas não excessivo, afável, sorridente, disponível para acolher sob o seu manto todos aqueles que não têm disposição para estar em casa. Os ditames da natureza e as necessidades dos humanos raramente se acordam sem atrito. Os cafés estão fechados, as pessoas parecem cautelosas, mas o Sol sorri provocante. O domingo corre manso, certo que chegará ao fim. É como um daqueles velhos rios que nunca se apressam para chegar à foz. Comecei a ler um romance de um autor que nunca lera, Hermann Ungar. A obra tem por título Os Mutilados. Foi publicada em 1923 e tem um universo não menos fechado do que os desenhados por Franz Kafka. Aliás, ambos partilham a condição de serem judeus checoslovacos e de escreverem em alemão. Enquanto ia lendo o livro, terei chegado a ¼, pensava que a mutilação será a condição da humanidade moderna. Todos os seres humanos terão sido amputados, não de uma perna ou de um braço, mas de qualquer coisa mais essencial, embora não saiba bem do quê. Não quero dizer que antes era melhor. Não era, tinha os seus próprios males. Oiço lá em baixo uma bola a bater, um pai e um filho dão chutos, entre exclamações e incentivos. Não aparentam qualquer mutilação, mas por certo ela estará dentro de cada um, tornando-os homens modernos. Das arcaicas colunas da aparelhagem, vem o som de um álbum de Bugge Wesseltoft, Everybody Loves Angels. Levanto-me e vou à janela. Eles lá estão nos telhados, os anjos. Disfarçados de pombos, olham com atenção para a cidade. Preocupa-os a inconsciência dos homens. Por vezes, juntam-se, conferenciam e partem em missão. A certa altura, bem o vi, tiram o disfarce e voam como só os anjos sabem voar.

sábado, 16 de janeiro de 2021

Efeitos do estupor

O facto de ser sábado tem-me trazido, nos últimos tempos, uma novidade, cada vez menos nova, saliente-se. Acordo com estupor e nem os rituais que se seguem fazem com que deixe de estar estuporado durante longo tempo. Sento-me, paralisado, e fico a olhar para nenhures. Isto trouxe-me à lembrança os velhos da aldeia onde nasci que se sentavam ao sol no largo da Igreja e ficavam ali, presos no estupor, a cismar, como quem acerta contas com a vida. Esses velhos já não cismarão há muito, pois quando o faziam eu era criança e agora sou quase tão velho quanto eles o eram. Terá chegado a minha vez de cismar. Apesar desses velhos serem exímios cismadores, não há como os gatos para o fazer. Ficam de olhos semicerrados, imóveis, talvez com pena de não serem esfinges egípcias, enquanto o tempo passa e eles meditam. Alguns, posso assegurar, atingem então o nirvana reservado aos felinos e transformam-se em budas. Nada disso, porém, acontecia com os velhos da minha aldeia. Nunca se tornaram budas. O que será também o meu destino, pois nasci na sua aldeia e talvez sejamos das mesmas famílias, nem que seja lá muito atrás. Ainda não espreitei a Sá Carneiro para descortinar a intensidade com que os meus conterrâneos estão a confinar. Julgo que terei de ir fazer compras, mas o que me apetece mesmo é ficar o dia a olhar para lado nenhum, como se fosse uma esfinge ou um gato, a cismar sobre o mundo e a vida, ou sobre coisa nenhuma que ainda é o melhor que há para cismar. Tudo isto por causa do estupor.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

Boinas bascas e soluções hidroalcoólicas

De manhã, lembrei-me de várias coisas sobre as quais viria aqui escrever. O problema reside na quantidade, pois com o passar das horas esqueci-me de quase todas elas. Sobram-me duas. Talvez toda a gente tenha tido a experiência da estranheza que sinto quando, de repente, se vê uma pessoa, que sempre se viu com máscara, sem ela. Há um desconforto, pois aquele rosto não condiz com a expectativa que se tem dele. O que me surpreendeu há dias foi, porém, outra coisa. Pessoas que se conhecem muito antes da pandemia e que se passaram a ver sempre de máscara, se a tiram acontece a mesma sensação. Aquele rosto, tão bem conhecido, tornou-se incongruente, alguma coisa não bate certo. Uma outra coisa de não menor importância está ligada à solução hidroalcoólica que comprei. Cada vez que a uso, desprende-se dela um odor a aguardente de figo, coisa que em tempos foi um dos bens mais banais que havia por estes sítios, onde não faltavam destilarias, umas mais legais, outras nem por isso e havia histórias de candonga, apreensão de alambiques, como se se estivesse nos Estados Unidos, no tempo da lei seca. São estas coisas que me ocupam o espírito. Na escola aqui ao lado, vejo passar, solitária, uma professora. Vai carregada de máscara e de pasta e leva-se resignada até ao portão por onde se há-de escapulir para entrar num carro. Na avenida, um homem de idade arrasta-se, o passo descompassado, as pernas bambas, o corpo pesado, os anos em cima dos ombros e uma boina basca na cabeça. Talvez a vida seja isto, máscaras que se ajustam ao rosto e o ocupam, álcool a cheirar a aguardente, professoras resignadas levadas pela pasta que carregam e homens de boina basca a passear ao sol. Quando cheguei a casa pensei que iria almoçar ao bar da esquina, comer alguma coisa que me fizesse mal e me soubesse bem, mas o bar está confinado. Um dia destes compro uma boina basca e vou para Bilbau.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

Descontinuações

O dia esteve agradável, mas agora o frio começa a afiar a sua lâmina de aço inoxidável, pronto para traçar pequenos golpes nos corpos incautos. O magnífico sol de Inverno declina, enquanto o país resvala para um confinamento em que não se confina por aí além, como acontece na generalidade das coisas que se fazem por cá. Fazem-se, mas nada de ser fanático e levar a vida a sério. Há tempo para tudo. Não sei o que me terá dado para falar do país. No parque infantil da praceta, fechado desde Março, há uma casota de onde sai um escorrega. Dois adolescentes decidiram abrigar-se ali das intempéries, apesar do céu estar limpo. As acácias exibem os ramos despidos, enquanto a relva da escola ao lado toma, com o entardecer, uma coloração verde cinza. O Word, onde escrevo, avisa-me que tem actualizações disponíveis, mas que necessito de fechar algumas aplicações. Mais tarde hei-de aplicar-me e fecho as aplicações. Também eu preciso de actualizar o meu software, mas o representante informou-me que o hardware é obsoleto e que as actualizações para ele foram descontinuadas. A palavra descontinuado começa a irritar-me e, não tarda, gerará em mim o mesmo sentimento de repugnância que a palavra resiliência. Janeiro está a chegar a meio e ainda não percebi o que foi feito aos votos de bom Ano Novo. Foram sequestrados? O mundo não é um lugar fácil.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

Um país confinado à nascença

Quando a luz começou a cair sobre a cidade, os carros estavam revestidos por uma carapaça de gelo, talvez um escudo contra um inimigo sem nome e sem rosto. Foi o que pensei ao olhar para a Sá Carneiro, ainda sem transeuntes, mas com carros a circular devagar, a tiritar de frio, enregelados no motor. Depois de me libertar do aparelho que me espiou o coração durante 24 horas, fui à frutaria, aqui mesmo ao lado, fazer um recado. Na verdade. Hesito se hei-de dizer na verdade ou em verdade, em verdade vos digo. Um dia destes tomarei uma decisão sobre o assunto. Na verdade, dizia, não passo de um moço de recados.  Para além do recado, achei por bem comprar umas clementinas. Talvez sejam marroquinas ou, mesmo, tangerinas. Não sou muito atento às classificações e depois não sei aquilo que como, pois não é a mesma coisa, presumo, comer uma tangerina, uma clementina ou uma marroquina. O melhor seria comer apenas laranjas, ao menos não havia dúvidas e evitaria que se fizessem interpretações capciosas do que escrevi. Enquanto esperava que me chamassem para me tirarem o aparelho e arrancarem os eléctrodos, vi na televisão que o país vai confinar mais uma vez. Esta conversa cansa. O país, desde que nasceu, está confinado entre o mar e Castela. O confinamento não é um acidente pandémico, mas a nossa natureza. Nascemos confinados e dessa condição não nos livramos, mesmo que comamos marroquinas e tangerinas, esses frutos que nasceram além-mar, não deixamos de ser o que somos. Não juro que o Holter, aquele aparelho que monitoriza um ECG dinâmico, não produza radiações que afectem senão o cérebro, pelo menos a mente.

terça-feira, 12 de janeiro de 2021

Coisas do coração

Há um quarto de século que me andam a espiar o coração. Olham para ele através de um monitor, fazem umas medidas, ligam-me a umas máquinas e observam o traçado de umas linhas esotéricas. Abanam a cabeça, dizem pois, muito bem. Fazem relatórios e, por fim, exclamam está tudo bem. Não encontrámos nada. Está provado, penso, que não é no coração que estão o amor, o ódio, a indiferença. Durante 25 anos e nunca encontraram nada, nem um pequenino sentimento, é porque não há, naquele lugar inóspito, nada para encontrar. Isso reconfortou-me, pois já basta a google saber sempre por onde eu ando, seria escusado que uma máquina soubesse os meus estados de ânimo afectivos, caso os tenha. Há alturas em que me ligam a um pequeno dispositivo e ando com aquilo durante 24 horas. Consta que é para fazer registos. Também hoje, depois de me terem olhado para dentro do coração e de me terem ligado a uma máquina de fazer tracejados, me colocaram um aparelho desses. Tenho sempre a sensação de que me tornei um bombista suicida com aquela coisa pendurada no peito. Depois, a menina entregou-me uma folha de registos. Regista aqui, nesta folhinha, disse ela usando o diminutivo, e começou a enumerar. Regista isto e aquilo, refeições, tomada de medicamento, esforços físicos. Também os sinais que o coração, entretanto, se dignar dar. Pode fazer tudo, diz ela séria e sem segundas intenções, menos tomar banho, que é a coisa que faço mal me levanto. Agora ando com a folhinha atrás de mim, e isto é a gesta que me cabe. Enquanto Ulisses foi tomar Tróia, eu ando com uma maquineta pendurada ao pescoço para me espreitarem as linhas do coração durante um dia. Reparo que a folhinha também exige que registe emoções. Terão desconfiado de alguma coisa? Querem ver que é mesmo no coração que moram os sentimentos.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

Mudanças e permanências

O primeiro terço de Janeiro está arrumado. Passaram-se coisas extraordinárias no mundo, mas este continua aquilo que era. Um sítio onde se passam permanentemente coisas extraordinárias. Talvez o mundo tenha sido criado por Giuseppe Tomasi di Lampedusa que, numa sexta-feira de ócio, terá decidido trazê-lo à existência, para se distrair do spleen. Em tempos, uma frase retirada do seu célebre romance O Leopardo fascinou-me. Nessa altura não era difícil encontrar coisas fascinantes. Começo com a frase em italiano para dar ar de culto, mas a verdade é que a encontrei na internet, pois de italiano sei ainda menos do que de todo o resto. Se vogliamo che tutto rimanga come è, bisogna che tutto cambi. A tradução não é difícil. Se queremos que tudo permaneça como está, é necessário que tudo mude. Talvez nesses dias me interessasse por coisas que não devia. Com o passar dos anos – isto hoje está a tomar um tom miseravelmente confessional – cheguei a outra proposição: Se queremos que tudo mude, é necessário que tudo permaneça como está. Caso me interessasse por política, daria muito mais atenção à minha proposição do que à do Lampedusa. No entanto, o autor proibiu-me de tocar assuntos desses nestes textos. Como narrador obediente, obedeço. O dia esteve esplêndido. Frio e com um sol que se desfazia em cintilantes raios luminosos. Quando atravessei a cidade, os meus olhos não viam mais nada senão o revérbero solar. Mesmo nesta hora em que o crepúsculo se aproxima, a luz ainda está viva, avermelhando-se para poente. A noite será fria anunciam os sites meteorológicos. No friso das orquídeas, a branca está a preparar-se para florir.

domingo, 10 de janeiro de 2021

Dar feedback

Naquele sítio onde oficio liturgias várias para uma população de ateus, corre em abundância, por mímesis da linguagem da conferência episcopal ou do comité central, que cada um escolha o que mais lhe aprouver, um som e uns rabiscos que me querem fazer crer que são uma palavra. Trata-se de um estrangeirismo já devidamente dicionarizado, com amplas explicações. A palavra, se aquilo é uma palavra, é feedback. Sempre que a oiço apetece-me ser castelhano, coisa ainda pior do que ser espanhol. Agora é todo um ritual executado a partir de um evangelho, ou de uma resolução do comité central, para continuar a haver liberdade de escolha, cheia de feedbacks. Tenho de confessar que têm alguma razão, pois tudo aquilo não passa de um ruído sibilante produzido não por aparelhos de transmissão sonora, mas por mentes que perderam o sinal da realidade e se afundam no vazio cósmico. Dito de outra maneira, trabucada de náufragos. Não devia pensar nestas coisas ao domingo, ainda por cima este que já está submetido ao confinamento. Também a minha mente está confinada. Já não tenho idade para este tipo de pantominices, embora a pantomina se tenha tornado há muito a natureza da coisa, o que faz de mim um pantomineiro. Isto para dar feedback.

sábado, 9 de janeiro de 2021

Dia da criação

Há aquele poema de Vinicius de Moraes que tem por título Dia da Criação e rodopia todo ele em torno de sábado. Foi dele que me lembrei ao visitar a balança, porque hoje é sábado. Ela agradeceu e foi simpática dando-me menos seiscentos gramas do que na visita anterior. Porque hoje é sábado. Isso animou-me e, depois de cumprir todos os rituais que cabem a quem se levanta, fui à rua. Estava um frio cortante, mas o sol caía sobre o corpo, e ambos se entregavam a um jogo agradável. Cheguei à farmácia, tive de esperar apenas uns minutos na rua, para me abastecer daqueles correctivos que contribuem para que um conjunto de valores se mantenha dentro dos parâmetros normais. Claro que, se fizesse um controlo antidoping, era logo suspenso e proibido de competir. Retiravam-me, casos as tivesse, todas as vitórias. Depois, gozando o frio e o sol, dirigi-me para uma grande superfície, para levantar uns livros numa lavandaria. Também aí, à entrada da superfície, tive de esperar numa fila ao frio e ao sol, mas tudo deslizou rapidamente. Os livros, infelizmente, não visam o prazer de ler, mas são suporte para a tortura do trabalho. Eu fui educado na tradição católica e esta, como se sabe ou deveria saber, começa logo por informar que o trabalho é o resultado de um castigo imposto a Adão e Eva e respectivos descendentes. Depois, a palavra trabalho deriva do termo latino tripalĭu, um instrumento de tortura. Que haja gente viciada em trabalho é coisa que não me admira. Fazem-me lembrar os flagelantes que na Idade Média se entregavam à autoflagelação pública. Na verdade, como a Igreja terá suspeitado, aquilo deveria dar-lhes prazer e logo foi proibido e considerado pecaminoso. Livros para castigo e tortura foi o que fui levantar, eu que não sou dado a heresias e a flagelações. Porque hoje é sábado.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2021

Fazer resumos

Ulisses e Telémaco, foram estes nomes que ouvi. À minha neta, com os seus doze anos, foi-lhe dada a missão de resumir cada um dos capítulos da Odisseia, na versão para jovens de Frederico Lourenço. Discutia, em videoconferência, o assunto com a avó. Espreitei no computador, ela disse-me olá avô. Está quase, acrescentou, e ergueu os dedos em sinal de vitória. Temo que o feito não seja tanto o de passar a amar a literatura clássica, mas de ter despachado a provação e ver-se livre, para sempre, de tal odisseia. É um admirável mundo novo. Até eu me sinto como fazendo parte de um filme de ficção científica. Depois, fui à varanda do escritório. Estava um frio cintilante, matizado de prata e oiro, mas em poucos instantes tudo ficou mais baço, a luz esmoreceu, o frio arrefeceu e julguei que iria tiritar. Chegavam até mim os ruídos da saída das escolas. Junto a um carro, três homens trocavam impressões sobre limpa-pára-brisas. No passeio, uma mulher de chapéu e máscara apressava-se como se fugisse de um monstro. Se tiver um cão, oiço dizer à pobre resumidora de capítulos, hei-de pôr-lhe o nome de Argos. Não se perderá tudo, pensei. Ao longe, os vidros do hospital reverberam, enquanto cedros e pinheiros dançam uma valsa ao som da música do vento. Poderia ter evitado esta última frase. Acho que vou fazer um resumo, seja lá do que for.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2021

Depois das cinco

Passam das cinco da tarde. O sol ainda brilha com algum vigor. Notei, nos últimos tempos, que houve uma transformação nos dias da semana. Anteriormente, só os do fim-de-semana tinham encolhido, enquanto os da semana se dilatavam de tal maneira que era um cansaço atravessá-los. Agora, entraram em dieta e também eles minguam. Passam tão rapidamente, que temo o dia em que os próprios dias desapareçam. É da natureza humana nunca estar contente com nada. Se os dias da semana se dilatam, protesta-se. Se se amesquinham, protesta-se. Na avenida, um casal cansado atravessa lentamente o seu acasalamento. Já não protestam. Escondem a cara na respectiva máscara e marcham lado a lado como se estivessem apostados em seguir duas rectas paralelas. Nem dão pelo bando de adolescentes que por eles passam, com a efervescência do corpo e saltar-lhes da boca. Um cão, livre da trela do dono, pára e fica a olhar as cavalhadas, depois corre para o relvado, onde encontra a árvore certa para erguer a perna. Pais apressados vão buscar os filhos à escola primária, metem-nos rapidamente no carro e desaparecem. As tílias tiritam de frio, enquanto os dois jacarandás que avisto continuam envoltos num sobretudo verde outonal. Talvez este ano chova pouco, pensei. Há-de fazer falta a água. Não são poucas as coisas a precisarem de lavagem.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

Há que ligar o scanner

Está consumado o Natal. Hoje é dia de Reis. Vejo-os ao longe, a descerem dos camelos que os trouxeram do Oriente, ajoelham perante o Menino e depositam com cuidado as suas oferendas. Amanhã, o presépio será desmanchado e, com os outros adereços natalícios, confinado numa arrecadação até que se inicie o próximo Advento. O dia nasceu festivo, mas tem-se toldado e agora um véu cinzento esconde o sol. Tenho mil tarefas pela frente. Olho-as com bonomia, pois um olhar menos agradável não as faria desaparecer e haveria de me tornar mais azedo. A isto chama-se aceitar o princípio de realidade, embora esteja convencido de que a própria realidade tem muitas dúvidas em aceitar-se. Não sei por onde começar, talvez por scannerizar um papel que, transubstanciado em pdf, hei-de enviar para um sítio que diz estar à espera dele, para se certificarem de que eu existo e que sou quem sou. Sorrio e digo-me que deve haver alguma fantasia literária em todo este mundo burocrático. Se nem eu tenho a certeza de ser quem sou e, ainda menos, se existo, como pode alguém ficar certo apenas porque lhe chega um arquivo digital que diz que sim, que fulano de tal existe e é quem é. Arquivos digitais qualquer um pode enviar, talvez até se possam enviar a eles mesmos, os arquivos. Tudo isto parece-me uma novela, e como sou o protagonista principal, uma novela de má qualidade. Os Reis Magos podiam ter chegado um pouco mais tarde. Afinal, o Menino ainda não tem idade para apreciar os presentes e as festas prolongavam-se mais um pouco. Há que ligar o scanner.

terça-feira, 5 de janeiro de 2021

Devaneios de Inverno

Levantei-me ainda o dia não tinha nascido. Quando a luz caiu sobre a Sá Carneiro, mostrou os carros estacionados cobertos por um duro escudo de gelo. Pouca gente se aventurava pelos passeios. O dia, depois, cresceu em luz e alguém terá dito hoje está um belo da de Inverno. Também eu seria capaz de o dizer. Gosto desses dias em que o corpo é rasgado pela espada do frio, mas o coração consola-se com aquele pequeno calor. Como uma criança, posso entregar-me a esse jogo de quente e frio, enquanto da boca saem baforadas como se estivesse a fumar. Os Invernos daqui não são dos mais suaves. Se o céu está limpo, as temperaturas descem até se tornarem cortantes, mas depois tudo se compensa com a cintilação de uma luz vibrante, na qual quase se pode discernir ondas e corpúsculos, mas isto não deve ser acreditado, pois é apenas a minha tendência para a hipérbole. Leio que se deve renunciar ao desejo de ser outra coisa diferente daquilo que se é. Medito longamente na frase, depois encolho os ombros e não sei o que hei-de fazer com ela. Nos campos da escola ao lado, rapazes jogam com bolas e não deixo de me espantar com o poder de atracção que uma bola exerce sobre o espírito. Engana-se quem pensar que a relação com uma bola é coisa do corpo. Os antigos gregos viam na esfericidade o sinal da perfeição. Alguém deu um pontapé numa das bolas, esta elevou-se bem alto e ao cair parecia uma lua a despenhar-se na crosta da terra.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

Enigmas que me atormentam

Grandes enigmas existem no mundo e não há quem se disponha a desvendá-los, pensei, enquanto olhava para as mãos e me perguntava por que motivo as unhas dos meus polegares crescem mais depressa que as outras. Temo que um dia os dedos vítimas de discriminação se revoltem. Aprecio universos coordenados, coisas que se conjugam, a harmonia com que certos utensílios devem ser dispostos, e logo me haveria de calhar uns apêndices, pálidas imagens de antiquíssimas garras, pouco dados à isometria. No sítio onde, para pagar as contas, oficio uma liturgia que não encontra fiéis, estava um frio de cortar. A certa altura, vou para uma varanda e fico ali a apanhar sol, a ver se descongelava, para que a homilia me corresse bem e os participantes fingissem um apetite que sempre lhes falta. Agora que estou descongelado olho sobranceiro para a rua e imagino o frio que deve haver por ali. Eu não devia falar nestas coisas, pois as homilias caíram em desuso e os praticantes devem ser práticos e cada um produzir a sua própria homilia, para provarem que são autónomos. Estou por tudo, embora sinta uma grande saudade do tempo de Pitágoras, em que os discípulos do venerado mestre, antes de entrarem na congregação, passavam três a cinco anos a escutar lições de um mestre que não podiam ver. Vencida a provação, passavam de acusmáticos a matemáticos. Hoje, porém, são logo matemáticos, embora ainda que não tenham escutado seja o que for. Não sei se esta história é verdadeira, mas juro que não a inventei, que a li já não sei onde. E como vinha mesmo a calhar, lembrei-me dela. O Word está a irritar-me. Solícito, sublinha oficio, não vá eu querer escrever ofício. Se ao menos me explicasse por que razão as unhas dos polegares crescem mais depressas que as dos outros dedos, ainda me apaziguaria. Para primeira segunda-feira do ano, poderia ter sido pior.

domingo, 3 de janeiro de 2021

Psicologia da natureza

Sento-me e evito pensar em amanhã. Saí de casa para fazer umas compras. As esplanadas batidas de sol estavam cheias de mascarados, quase mascarados e não mascarados. As da 5 de Outubro, cobertas de sombras, dormiam vazias, sem que alguém se lembrasse de as acordar. Na avenida marginal, passeantes deslocavam-se lentamente. Os mais velhos com máscaras, ou mais novos nem por isso. Nas superfícies comerciais não há pluralismo relativamente ao uso de máscaras, o que para além de vantagens sanitárias terá outras. O dia já esteve mais luminoso. O sol terá perdido energia ou, para ser mais exacto, motivação para aquecer os pobres mortais. Os elementos da natureza também devem ser considerados na sua dimensão psicológica. Utilizar, para se lhes referir, palavras como motivação, resiliência, assertividade, e todo o conjunto de banalidades que caíram no discurso público. A lua cheia é muito assertiva, o mármore de Estremoz tem uma enorme resiliência e assim por aí fora. Só eu, que vivo num mundo de assertivos, não o sou. Nem isso, nem resiliente, nem motivado. Nem sequer inspirado. Bem tentei estabelecer um contrato com as musas. Eu cultuava-as, elas inspiravam-me. Riram-se na minha cara e voltaram-me as costas. Janeiro já vai no terceiro dia e é tudo o que há para dizer.

sábado, 2 de janeiro de 2021

Exercícios triviais

O sábado já começou a descer a encosta da tarde. Nunca deixo de me admirar como os dias sobem até ao pico do meio-dia e, lá chegados, não conseguem conter-se e toca a andar por aí abaixo, com o mesmo passo que os levou a subir a outra vertente do outeiro. Outeiro e não montanha, pois, na orografia do calendário, os dias não passam de montículos, uns enrugamentos sem importância. Na avenida, ainda há pessoas que deambulam ao sol, pais com filhos, gente que aproveita o bom tempo para caminhar, carros que precisam de exercitar as rodas e evitar o colesterol do excesso de gasolina, coisa que lhes poderia provocar um acidente vascular cerebral ou outro infortúnio semelhante, pois não há mecânico que, para prevenir tais azares, receite umas estatinas. Por falar em estatinas, essas deusas benfazejas de quem tem propensão para a gordura hemática, havia na Roma antiga, uma deusa nomeada Estatina, que era invocada quando as crianças davam os primeiros passos, talvez para que caminhassem no caminho recto ou com rectidão no caminho. Talvez não seja a mesma coisa. Se eu tornasse estes textos num diário, seria um registo da minha trivialidade. Raros são os dias em que tenho alguma coisa digna de ser contada. Sendo assim, nem grandes acções nem grandes palavras tenho para partilhar. Resta-me inventar uns disparates para passar o tempo, pois não passo de um pobre narrador, manipulado por um autor que se esconde e disfarça atrás de mim. Isso, porém, é um assunto da teoria literária e não vem para o caso. Está um belo sol de Inverno, e isso é o suficiente para desculpar qualquer idiotice.

sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

O ano começa volúvel

O ano começou sujeito ao império da volubilidade. Acordei relativamente tarde, abri a janela e recebi o cumprimento de um sol agradável e voluntarioso. Olhei o céu e descobri que a luz solar tinha aproveitado uma abertura nas nuvens para se entregar a exercícios de cintilação, uma operação circense para o dia de Ano Novo. Depois, as nuvens cansaram-se e uniram-se, formando um lençol cinzento, de múltiplos matizes. Uns mais claros, outros mais escuros. Agora, chove, mas também faz sol. Será que um ano que começa com tal instabilidade poderá ser bom? Dou uma vista de olhos pelos sites noticiosos e descubro notícias desagradáveis. Também é verdade que as coisas agradáveis raramente são notícia. Constou-me que não se pode andar pelas ruas depois das treze horas. Já falta pouco e também não tenho motivo para sair. Na Sá Carneiro, um casal caminha de mãos dadas, passa uma excursão de ciclistas, trocando chistes, e dois carros, em andamento lânguido, deixam um rasto de fumo ronronante. Não devias usar sinestesias, oiço-me dizer. Pois não, respondo, mas tenho uma vontade fraca e, ainda por cima, o odor dos raios de sol estimula-me a inclinação para a facilidade. Na minha secretária, um livro de poesia, outro de lógica e uma gramática disputam a atenção. Fecho os olhos e oiço Arve Henriksen com o Trio Medieval em St Birgitta Hymn – Rosa Rorans Bonitatem. Quero lá saber dos livros. No momento em que o defunto ano transitou para o que agora temos pela frente não me dei propósitos nem fiz pedidos. Já tenho idade suficiente para saber que qualquer ano se está nas tintas para desígnios e solicitações. A única coisa com que um ano, qualquer que ele seja, se preocupa é passar. Assim seja.