domingo, 31 de maio de 2020

Os falsos caminhantes

Hoje já andei seis quilómetros. Quase parecia um caminhante, mas ainda não consigo disfarçar o velho sedentário que habita no meu corpo. As almas podem ser classificadas sob diversos critérios, o que dá origem a um sem número de taxionomias e não menos controvérsias. Isto é do conhecimento geral, não estou a dar nenhuma novidade. Uma das classificações divide-as em dois tipos. Almas sedentárias e almas nómadas. A minha é completamente sedentária e quando me ponho a caminhar pelas ruas vê-se logo que se está perante uma falsificação. Se não o dizem abertamente é por convenção social, mas os verdadeiros caminhantes, ao verem-me, pensam lá vai um a tentar enganar meio mundo, sabe lá ele o que é caminhar. Têm razão, não sei, não faço a mínima ideia. Hoje andei mais de uma hora a falsificar a realidade, a disfarçar-me de andarilho, de alguém que se treina para fazer uma longa peregrinação ou então que há-de acabar na ignomínia de ser um turista que abre a boca por tudo o que é sítio, depois fecha-a e faz umas fotografias, para mais tarde recordar, embora não tenha nada para recordar. Os lugares também têm almas e estas são avaras e avessas a darem-se a conhecer à alma nómada do turista. O melhor é evitar estas meditações, não vão pensar que sou algum sociólogo. Tenho muitos pecados e defeitos, mas não esse. Imagino que vou almoçar tarde. Aproveito para pôr algum trabalho em ordem e assim infringir o descanso dominical. Os pássaros meus vizinhos estão hoje dados à garrulice. Tagarelam sem parar. Tento perceber o motivo da conversa, mas não tenho ido às aulas sobre a linguagem dos pássaros e o essencial da disputa passa-me ao lado. Como é habitual, também isto não é novidade. Hoje é domingo, dia 31 de Maio. O mês está a acabar e não sei o que hei-de dizer dele. O mais sensato é seguir uma instrução proverbial escutada na longínqua infância. O calado vence tudo. Não me recordo de ser loquaz, mas nunca se sabe.

sábado, 30 de maio de 2020

Narrativa sem nexo

Há quem escreva longos poemas para desaparecer dentro deles, como se fossem um véu que a tudo ocultasse, o esconderijo seguro contra os bombardeiros inimigos que, a toda a hora, sobrevoam a cidade e deixam cair, sobre as cabeças incautas, bombas ovaladas. Estas explodem com o barulho de um cataclismo, ensurdecendo a população, dando vida à palavra catástrofe, fazendo florir em bocas desdentadas vocábulos como desgraça, desdita, desastre. Ainda é cedo para que alguém diga tragédia, pensa o poeta que, com a sua inclinação lírica, não tem um estro trágico. As deflagrações ouvem-se a grande distância, mas, ao longe, ninguém vê a fragmentação das casas, o estilhaçar dos vidros, a queda das paredes, os corpos despedaçados, as loiças escaqueiradas ou o poeta a tecer o poema, onde se esconde, traçando um labirinto, para que nele o inimigo, a que Ariadne nenhuma concederá o fio da vida, se perca e, com o passar dos dias, morra de fome, deixando um cadáver cada vez mais ressequido, que alguém milénios depois encontrará. Não me perguntem porque escrevi isto, pois não faço ideia. Uma razão plausível diz-me que não me tendo ocorrido mais nada aproveitei estas palavras que me foram saindo dos dedos, entraram pelas teclas e desabrocharam no monitor. A maior parte das coisas que acontecem acontecem assim, sem que os seus autores façam qualquer ideia da razão. Outra hipótese, a que não faltará verosimilhança, é que tudo se deva aos astros, a uma conjugação enviesada entre o Sol e a Lua, talvez a um amuo de Júpiter, ao rancor de Marte ou ao desejo de Vénus. Ó Afrodite Citereia! Esta exclamação pontuada é uma saudação, um tributo, quase uma oração. Não me peçam explicações. Hoje é sábado, dia 30 de Maio. O mês colocou o pescoço na guilhotina, espera apenas que o carrasco acerte as contas do serviço, coisa a que a arte de regatear trará a sua demora. São soturnas as metáforas que me ocorrem neste início de tarde.

sexta-feira, 29 de maio de 2020

Ir ao campo

O que me vale é que não tarda e estou a caminho de casa. O texto começa mal. Não devia ter vindo ao campo. Cansa-me tanto bucolismo mecânico. Motores por todo o lado, numa imitação infernal da música minimal repetitiva, composta por alguém à beira da loucura. Fala-se do campo e as pessoas imaginam cenas idílicas com pastoras e pastores, longos interlúdios musicais e fogosos amplexos amorosos, ao som do chocalhar dos rebanhos e do canto dos pássaros, como se aquilo fosse o jardim do Éden, cujas portas tivessem sido reabertas. Não foram. Na cidade, ao menos respiramos um ar poluído autêntico e sujeitamo-nos ao ruído, pois nunca nos foi prometido outra coisa, a não ser o desatino desenfreado, o vício sem controlo, a maldição eterna. Falo assim, como se vivesse numa grande metrópole, mas a minha cidade é uma aldeia pequena, num recanto da província, onde passa um rio afável, em cujas margens pescadores apanham peixes que logo devolvem ao fio de água que serpenteia entre o casario. O campo não faz bem à escrita, puxa-me para o lugar comum, aviva o provincianismo que me habita. Apiedo-me de mim. O fim-de-semana caiu-me em cima e ainda não sei bem o que fazer com ele. Dos escritores neo-realistas, há um de que gosto bastante, talvez o único. Carlos de Oliveira. Pensava que tinha toda a sua obra e hoje descobri, já nem sei bem porquê, que me falta o segundo romance, Alcateia. Não sei se ele o renegou, pois os escritores têm destas coisas. Fazem filhos e depois recusam-se a reconhecê-los. Talvez me ponha em campo e descubra a matilha de lobos. Existirão outros encontros bem mais perigosos, podem crer. Hoje é sexta-feira, dia 29 de Maio. Não faço ideia para que serve contar os dias, como se existissem dias, semanas, meses, anos. Uma voz vinda dentro de mim diz-me não sejas idiota, se não fossem contados, não existiriam. Continua a contar, ou queres acabar com o tempo. Não percebi a agressividade da voz, mas obedeço.

quinta-feira, 28 de maio de 2020

Liquidem os objectos

Os objectos tornaram-se exercícios difíceis. Portas, maçanetas, chaves, corrimãos, botões do elevador, terminais de multibanco, puxadores, superfícies lisas e rugosas, garrafas de vinho e de azeite, pacotes de arroz ou de massa e todo o resto do mundo dos objectos desde que venham do desconhecido ou do conhecido exterior à caverna que habitamos. Há que ter cuidado, não tocar, desinfectar, colocar ao sol, à sombra, à chuva, dar-lhe o ar do meio-dia ou da meia-noite, pô-los em repouso, em quarentena, oferecer-lhes uma quaresma, para ressuscitarem no seu domingo de páscoa. Haveremos de enlouquecer com esta xenofobia sanitária, nesta nova selva com aparência civilizada, onde os tigres, leões e leopardos foram substituídos por um frasco de compota, uma embalagem de bolachas ou a garrafa de água que se compra na estação de serviço. Confesso que não sei o que me deu hoje para este tipo de peroração, mas ainda há dois meses e meio pegava nos objectos sem pensar e agora é o que é. Tudo se pode dividir entre o puro e o contaminado, como se as coisas tivessem uma natureza moral, dotadas de sexualidade e que devessem entregar-se na noite de núpcias em estado virginal, puras, intocadas, plenas de inocência. Talvez o melhor seja acabar com os objectos. Quando a temperatura sobe por estes lados, não afianço a qualidade do meu estado mental. O termostato que mede a febre da casa começa a aproximar-se de uma zona perigosa. Tremo só de pensar o que poderá esconder. Hoje é quinta-feira, dia 28 de Maio. Terei de fazer duas visitas, uma ao meu neto, a outra à sua bisavó. Devia poder juntá-los, mas ainda não vai ser hoje. Bebo água por uma garrafa-termo, o que me vale é que a tinha comprado no ano passado, naquele tempo em que se dispensava certificação moral às meras coisas.

quarta-feira, 27 de maio de 2020

Trocas neuronais

A primeira palavra que escrevi continha um erro ortográfico, fruto de uma associação que poupo aos leitores. Fiquei a olhar para o teclado e para dentro de mim, perguntando-me que estranhas conexões se passaram na mente para que os dedos, sem quererem saber da ordem que lhes dera, conquistassem autonomia para se submeterem a um outro senhor, cujos impulsos sendo meus me escapam. Sim, a psicanálise também vive disso, embora o caso seja já mais do foro do neurologista. O telhado esbranquiçado, talvez um cinza muito claro, do pavilhão desportivo da escola vizinha reverbera batido pela impiedade dos raios solares. Oiço uma máquina em manobras, talvez numas obras por perto, mas não a avisto. O dia desliza quente e sorrateiro. Na rua estão 34 graus e nem as sombras me convidam para sair de casa, embora o arvoredo da Sá Carneiro esteja exuberante. Por vezes os erros preocupam-me, não pela ortografia, mas por aquilo que eles revelam do estado do meu aparelho neuronal, caso possua um, coisa por provar. Os livros das estantes que me rodeiam têm o condão de me irritar. Não por eles, mas pelas ilusões que me levaram a comprá-los. Talvez exista em mim um pendor masoquista, pois os livros com os quais estou reconciliado estão longe da vista. À minha volta só fantasias e quimeras. Isso, porém, não interessa a ninguém e, além do mais, pode nem corresponder à verdade. Hoje é quarta-feira, dia 27 de Maio. As acácias já esconderam debaixo das folhas os ramos que o Inverno despira. Há árvores que não cultivam o pudor, a primeira das virtudes públicas que qualquer um deve ostentar para não cansar os outros. Os pássaros não se calam, numa cegarrega interminável. Podiam ir cantar para outra rua, mas essa já deve ter os seu tenores.

terça-feira, 26 de maio de 2020

A data em que a vida muda

Nunca sabemos a data em que uma vida muda, foi o que pensei ao consultar o calendário. Nicolau II, da Rússia, foi coroado a 26 de Maio de 1896, não sabia ele que isso lhe iria marcar a fortuna e que o levaria a uma morte infeliz e prematura, porque alguém, talvez sem saber o que fazer dele, se lembrou de a antecipar. Vejo-o a ser coroado, rodeado pela corte, num quadro de Serov e quase sinto vontade de lhe gritar para fugir dali, que renuncie à coroa e vá dar uma volta pelo mundo com a Feodorovna. Calo-me, pois ele não me ouviria. Somos sempre surdos para as palavras do destino, as potestades mais do que os outros mortais. A cidade vai retomando os seus ruídos e rumores, o gorgolejar da vida, o trânsito que se adensa, as gentes que se tomam de calores e, mesmo de máscara cingida, se despem para o Verão antecipado. Chegou-me um vídeo do meu neto. Sobe para uma cadeira, dali trepa para a cadeira de refeição, senta-se no tabuleiro e pega num livro. Abre-o e faz um discurso, como se lesse na mais estranha das línguas. Isto gerou um conflito de interpretações acerca da performance da criança. A avó ficou encantada com a teatralidade da leitura e o avô com a destreza da subida. Homens e mulheres vêem o mundo de lugares diferentes, disse eu, mas não estou certo se, ao escrevê-lo, não estarei a ofender algum imperativo igualitário. Nestes dias, contentamo-nos com poucas coisas. Ontem anotei que tinha de encolher estes textos. Até a mim me cansam. Hoje é terça-feira, dia 26 de Maio. Outro mês que declina e com ele também a Primavera começa a preparar as malas para um novo exílio. Os anjos insistem em disfarçar-se de pássaros. Eu finjo que me iludem, mas sei muito bem que não são pássaros.

segunda-feira, 25 de maio de 2020

Paisagens despovoadas

Uma algazarra lá em baixo, mas as vozes calaram-se de imediato e tudo voltou ao silêncio que tem, não sem insídia, marcados os últimos tempos. Continuamos cercados por estatísticas e profecias, numa loquacidade que ainda não esmoreceu, numa facúndia que não sofre desânimo. Cada espécie grasna à sua maneira e a nossa não é excepção. A escola aqui ao lado deve ter alunos, mas ainda não os avistei. Ter-se-ão contraído até se tornarem uma sombra que evita chocar contra outra, não vá acontecer uma faísca e logo um incêndio. A janela aberta deixou-me ouvir alguém espirrar num apartamento contíguo. Hoje já videoconferenciei por duas vezes, o que me ocupou a manhã. Medito sobre estes textos e pergunto-me se não me tornei num insuportável misantropo. Não tenho heróis nem vilões, não descubro personagens a quem dar vida, como se estivesse apenas interessado em paisagens das quais, para sua salvação, vou eliminando a humanidade. Imagino-me a escrever romances apenas compostos por paisagens, sem presenças humanas mas com acção. Árvores e animais tomam a palavra, arquitectam traições e assassínios. Os elementos animam-se e dotados de alma falam. A água e o fogo disputam entre si, a terra e o vento proclamam, uma, a excelência da imobilidade, e, o outro, a primazia da inconstância. Outras vezes são os móveis que tomam a palavra. As cadeiras discordam, as mesas marcham em protesto e até um aparador julga ter direito a exprimir uma opinião que ninguém lhe pedira. À minha frente tenho a terceira edição de um dos mais extraordinários romances escrito em língua portuguesa, Finisterra – paisagem e povoamento, de Carlos de Oliveira. Comprei-o em Lisboa no dia 9 de Outubro de 1979. Nesses dias ainda assinava os livros que comprava e registava o dia da aquisição. Depois o amor à propriedade e ao calendário feneceu. Leio: Ao fim da tarde, um último raio de sol embate no nódulo da vidraça, pulveriza-se em coágulos brancos, dispersa-se pelos cantos do quarto. E em tudo isto há tal perfeição que acho uma bênção não ter personagens nos meus textos. Hoje é segunda-feira, dia 25 de Maio. A rede mosquiteira que me protege da invasão dos insectos está caída, será sensato ir compô-la, antes que um exército de melgas encontre por aqui o seu campo de combate. Talvez amanhã descubra alguma personagem para me alegrar a narrativa. Tenho de cortar no tamanho dos textos, anoto.

domingo, 24 de maio de 2020

Aloquetes e cadeados

Leio mais devagar. Pareço arrastar a leitura não por desinteresse mas por um qualquer motivo que desconheço. É possível que os olhos se cansem, é possível que as coisas habituais estejam a perder sentido, é possível qualquer outra razão que desconheço ou que quero desconhecer. É o que acontece com a minha leitura de O Jardim dos Finzi-Contini. Há pouco uma palavra surpreendeu-me. O narrador, para que a bicicleta não fosse roubada, deveria colocar nas rodas um aloquete. Fui ver quem tinha traduzido o livro. O poeta Egito Gonçalves, um homem que nasceu em Matosinhos e morreu no Porto. Percebi de imediato a opção por aquela tradução e não pela sulista e latina cadeado. A primeira vez que ouvi a palavra foi no dia em que me apresentei num quartel da cidade do Porto para cumprir serviço militar. Sempre achei a palavra inusitada, apesar da sua origem inglesa e francesa. O dia encandeceu. O calor espalhou-se pelas ruas e anuncia os dias tórridos que hão-de vir. No final da manhã, desci o viaduto de carro e passei pela velha ponte medieval que permitia chegar ao centro da antiga vila. Em tudo havia um ar dominical, até o sol vestia um fato domingueiro, como antigamente as pessoas o faziam para ir à missa. Depois tornou-se de mau tom, ao domingo, andar vestido de domingo, uma coisa de provincianos retardados e, como todos nós provincianos retardados sabemos, ninguém quer passar por provinciano retardado. Estou a repetir-me demasiado. No friso que lhes cabem as orquídeas estão praticamente todas floridas. Apenas uma ainda retém as flores em botão, como se persistisse em defender um segredo que não quer partilhar com ninguém. Hoje é domingo, dia 24 de Maio. Tivesse eu poderes para tal e fechava todo este tempo numa despensa escura e esconsa e depois trancava a porta com um aloquete, atirando a chave para o oceano. Haveria então de me sentar na borda do poço que havia na entrada da infância e comer nêsperas, caso as houvesse, ou magnórios se estivesse no norte.

sábado, 23 de maio de 2020

Luz e trevas

Nada o homem receia mais do que ser tocado pelo desconhecido. É com esta frase que começa o longo ensaio Massa e Poder, de Elias Canetti. Este pavor é o horizonte onde se desenrolam as vidas humanas. A maior parte do tempo nem damos pela a existência dele, mas se algo desconhecido nos toca, ele lança as garras de fora e o homem treme e teme. Talvez tenhamos aceitado sem grandes problemas este tempo de confinamento devido ao pânico que o desconhecido desencadeia nos nossos organismos. Depois, como em tudo, cansamo-nos e, intrépidos, enfrentamos o desconhecido, ou imaginamo-lo conhecido e o medo de por ele ser tocado vai-se desvanecendo, não porque se é corajoso mas porque o hábito venceu o estado de vigilância. Aos sábados dever-se-iam evitar estas meditações, não porque traiam melancolia mas por serem sérias. O dia está quente, mas temperado pelo vento que faz balançar os ramos das oliveiras e refresca a atmosfera. No friso das orquídeas, a branca ainda tem flores, mas a folhagem está a amarelecer devido ao esforço contínuo em florir. Fora ela mulher e seria mãe de vinte filhos. É um enigma ela estar neste estado há bem mais de um ano e continuar a rebentar. Imagino que também ela terá medo do desconhecido e por isso se protege na caverna da floração. Se não estivesse mole, com os neurónios lânguidos, devido ao calor, esforçar-me-ia por encontrar uma metáfora mais reluzente. Tenho estado a ouvir Palestrina. Este tem uma peça denominada Missa do Homem Armado. Isso lembrou-me um outro músico italiano, quarenta anos mais novo, Don Carlo Gesualdo, Príncipe de Venosa, que assassinou a mulher, Maria d’Avalos, e fez assassinar o amante desta, Fabrizio Carafa, Duque de Andria, ao apanhá-los em flagrante. Um crime de honra que animou os finais do XVI. A primeira vez que ouvi a sua música, interpretada pelo The Hilliard Ensemble, pensei que só um anjo luminoso a poderia ter composto. Muitas são as trevas que se escondem na luz. Hoje é sábado, dia 23 de Maio. A tarde começa a perder o fulgor e, não tarda, dobrará o joelho para que o inexorável carrasco a decapite e a entregue ao reino das coisas que passaram. Também Maria d’Avalos teria a sua luz e não terá tido tempo para perder o fulgor. Não devia ter casado com o primo.

sexta-feira, 22 de maio de 2020

Do tédio e das papoilas


Chegou o fim-de-semana, mas agora tudo parece contaminado. A semana entra pelo seu fim como se este fosse dado à utilidade. Aqui deveria acrescentar e vice-versa, mas talvez não seja verdade que também o fim-de-semana contamina os dias de labor. Num livro de um filósofo americano leio que o tédio é um assunto sério e ele acrescenta pressuroso que a essência do tédio reside em não termos interesse no que se passa. Tudo isto é dito candidamente num ensaio sobre o amor. Uns sofrem de spleen, outros são atacados pela náusea e outros não se interessam pelo que se passa. Não vou pensar sobre este assunto, mas talvez coleccione as palavras para criar uma taxinomia de estados existenciais e poder usá-los sempre que tenha oportunidade. Comecei a falar de contaminação, mas logo me perdi por outros caminhos, como se a realidade se estivesse sempre a bifurcar-se diante de mim, para que eu me perca nela e não encontre o caminho para casa. Voltando ao magno problema da contaminação, também a noite contamina o dia com as suas asas de seda negra e assim a luz vai tornando-se crepuscular, cheia de tremores e hesitações, fazendo crescer as sombras até que tudo se apague e se envolva no pez que uma existência entediada faz cair sobre o mundo. Há pouco vi gente a entrar para o bar do outro lado da rua. Pergunto-me se já se poderá ir beber uma cerveja, embora eu não goste particularmente dessa bebida de bárbaros. Como é habitual, não me ocorre nada para dizer. Hoje é sexta-feira, dia 22 de Maio. Ontem foi feriado, mas esqueci-me de o proclamar. Muitos são os concelhos que fazem da Quinta-Feira de Ascensão o seu feriado. Imagino que vejo papoilas na escola ao lado, mas por certo não se tornarão no supremo encanto da merenda, pois as burguesas já não fazem piqueniques, nem tomam parte em histórias que mesmo sem grandeza dariam ainda uma aguarela.

quinta-feira, 21 de maio de 2020

Dia da espiga

Sem ser convidada, uma varejeira entrou pela janela. Zumbe e rodopia até que encontra a saída, devolvendo ao lugar onde me encontro o silêncio. Afundo-me nessa ausência de som, mas interrompo-a com o barulho dos dedos a bater nas teclas. O melhor é fechar a janela, pensei. Há que evitar que insectos não desejados entrem por ela. Passei o dia a fazer uma daquelas coisas que o dever – ou a necessidade de pagar as contas – me impõe, mas que há-de servir para pouco, caso sirva para alguma coisa. As minhas netas acabaram de sair da escola, quero dizer que abandonaram o lugar em frente ao computador e retomaram o ritmo incerto da adolescência. Se tudo o que se tem passado fosse um intervalo, uma espécie de interlúdio dramático, talvez ainda fizesse sentido, mas se é uma nova realidade, então há que fazer longos exercícios de paciência. À minha frente ergue-se uma acácia, mais ao longe um bosque de pinheiros mansos. Uma ilusão de óptica cria um espaço contínuo entre ambos, apenas diferenciado pelos díspares matizes de verde. Os pardais ameaçam entrar pela casa, mas no último instante arrependem-se e, numa curva apertada, afastam-se. O terraço está cheio de folhas mortas. Cada uma é um pensamento que a acácia pensou e logo esqueceu. Também eu vivo rodeado de folhas mortas, os pensamentos que fugiram de mim, que foram mais rápidos que o meu desejo de os segurar. Não tarda e virão os dias de calor e as pessoas hão-de vestir roupas estivais e costureiros haverá que desenharão máscaras para cada estação. Nas passerelles, mesmo nos desfiles de roupas interiores ou de praia, os modelos terão uma máscara atarraxada ao rosto. Fui mordido num dedo. Uma baba cresce irritante, tenho de procurar a pomada ou esquecer-me da mordedura. Não haverá maior virtude que a do esquecimento. Hoje é quinta-feira, dia 21 de Maio. Não haverá festejos da Ascensão e eu não irei pelos campos apanhar a espiga. Nunca fui, mas talvez esteja a mentir. O alarme da casa disparou. O seu zumbido é pior que o da varejeira, mas alguém o acalmou.

quarta-feira, 20 de maio de 2020

Rememorações em dia de calor

Uma estranha conjugação de luz, vento e arvoredo levou-me para um mundo que desapareceu há muito. Olho-o estupefacto, é apenas um universo fantasmático, povoado de sombras e murmúrios. Não são as árvores, nem a água, nem o vento, nem as casas, nem as pessoas, nem sequer eu, mas os espectros de tudo o que ficou lá atrás, sepultado como ficam todas as coisas que recebem da mão do tempo a pérfida estocada. Quase não me reconheci, mas ao ver uma figura mergulhar num grande tanque de rega, sob a copa das ameixoeiras, recordei-me que seria eu. Em tardes infindáveis de Verão, matei o calor naquela água e sentei-me no largo muro do tanque enquanto ouvia o ramalhar das árvores, o canto dos pássaros e olhava com atenção o jogo de luz e sombra que o ondular dos ramos projectava na superfície do mundo. Quem vivia nessa casa morreu há muito. O telemóvel insiste em cortar-me a rememoração e enviar-me para o território da realidade. Resisto, porém, e penso, para me iludir, que ainda estão longe os pavorosos dias de Verão. Leio que não nos devemos deixar enganar pela retórica dos maus argumentos e concluo que só devemos deixar-nos lograr pela retórica dos bons argumentos. Depois penso que cada um se deixa burlar por aquilo que tem à mão. Iludir-se com bons argumentos pode ter um preço demasiado alto a pagar para alcançar uma coisa que não necessita de qualquer esforço. Imagens do passado batem à porta, atiram pedras à janela, insistem em assombrar-me. Conversas entre adultos, um cão ou um gato com que brinquei, as figuras que desfilam agora na minha memória e que foram apagadas deste mundo. Alguém que tinha um dente de ouro, o maço de notas tirado da algibeira pelo homem do peixe, as tulhas de grão e feijão de alguma mercearia, cuja dona vestia uma bata negra acetinada, as bombas de extracção de azeite e petróleo. Depois chega a procissão com os andores, as raparigas vestidas de branco com tabuleiros à cabeça e a pomba do Espírito Santo. No largo em frente à igreja, do outro lado da estrada, ainda vejo o placard que anunciava um jogo de futebol jogado há quase sessenta anos. Hoje é quarta-feira, dia 20 de Maio. Um pássaro, talvez um deus disfarçado, diz-me que não devo rememorar os mundos que ficaram submersos. Digo-lhe que tem razão, mas que não sou dono da minha memória, nem da minha vontade, nem de mim. Mais uma razão para não fazeres o que não deves fazer, responde-me ele.

terça-feira, 19 de maio de 2020

Perdido no mundo

Sorrateiro, o Verão instala-se. Chega de garras afiadas, estiletes e punhais de luz sobre a pele, até que o ânimo sangre e uma preguiça se instale, convidando os corpos ao relaxe e as almas ao pecado. Nesta trama romanesca, em que as personagens se dividem em corpo e alma, o corpo é inocente, mas a alma é culposa, duma culpabilidade insinuante, plena de manhas, truques e armadilhas. É ela que obriga o corpo a arrastar-se no lamaçal do erro, ele que por si mesmo não seria mais do que uma abóbora à espera que o tempo passasse. Esta deriva pela teologia talvez se deva a ter estado todo o dia ocupado com dados, gráficos, leituras e relatórios. Ou então será da música que estou a ouvir e que de súbito me raptou da rasura habitual e me pôs em contacto com os excruciantes problemas da relação entre corpos e almas. Raramente sabemos o que causa os nossos pensamentos. Esta frase demonstra que sou uma pessoa cautelosa. Fosse eu intrépido e diria que nunca sabemos o que causa os nossos pensamentos. Hoje todavia não quero ofender aquelas pessoas que sabem sempre quais as causas das coisas, a começar pelos seus pensamentos. Eu nasci para a ignorância, para o erro e para a perda. Ainda ontem decidi andar mundo fora, pés na terra, a respirar os ares do campo e perdi-me. O mundo campestre é sempre igual e trocou-me as voltas. Já estava a ver que não encontrava a estrada que me haveria de levar à casa da partida. O que vale é o telemóvel, que recebeu a indicação do sítio que me esperava e lá fui eu guiado por uma voz que entoava daqui a 200 metros cortar à esquerda. E eu, fiel como um cão, cortava à esquerda e à direita, se recebesse ordem para tal. Aquilo que poderia ter sido uma aventura digna de D. Quixote foi decepcionante. Estava perdido mesmo junto ao sítio onde devia chegar. Nem moinhos havia para desafiar. Hoje é terça-feira, dia 19 de Maio. Oiço uma sirene, talvez também ela ande perdida. Esperam-me longa horas de trabalho, mas o corpo, levada pela obscura potência da alma, apenas lhe apetece dormir. Não há corveia maior do que ter um corpo que se deixa enrodilhar pelas tramóias da alma. Ou será o contrário?

segunda-feira, 18 de maio de 2020

Por que não te calas?

Oiço o ladrar de um cão. Haveria de ser o ladrar de um gato ou de uma galinha, pergunta-me a minha consciência. Olho-a com desdém e não respondo. O animal insiste em fender o silêncio, em abrir-lhe um buraco por onde a sua inquietação se escoe e ele possa com alívio deitar-se ao sol em prolongado descanso. Um dia haveremos de compreender a língua dos animais, o dialecto de cada espécie, o significado preciso de cada modulação sonora, o sentido que nasce do ritmo com que entoam o que querem comunicar. Mais tarde, talvez muito mais tarde, aprenderemos a interpretar o silêncio das árvores, dos arbustos, de todas as espécies que fazem parte do reino vegetal. Uns comunicam connosco pelo som, outros pelo silêncio, mas ainda somos demasiado infantis para afinar os nossos sentidos pelos das outras espécies. Não sei o que me deu para entoar um louvor à harmonia universal. Também eu tenho necessidade de belas ilusões. Se não me dão a verdade, pelo menos ajudam à boa disposição. Sigo um conselho de Winston Churchill: Seja optimista. Não serve de muito ser outra coisa qualquer. Hoje por hoje entrego-me ao optimismo, não porque haja razões a seu favor, mas porque se é pessimista relativamente às alternativas. Em resumo, o verdadeiro optimista é aquele que é pessimista perante o pessimismo. Continua a ser notória a minha falta de assunto. Poderia seguir a injunção que há uns anos um certo rei dirigiu a um protótipo de tiranete. Por que não te calas? Esta é uma belíssima pergunta, para a qual não encontro resposta. Talvez siga o ensinamento do antigo primeiro-ministro inglês e diga: Falo. Não serve de muito estar calado. Comecei a semana útil com estas inutilidades, mas é com elas que preencho a vida. Hoje é segunda-feira, dia 18 de Maio. Ao longe avisto um bosque de pinheiros mansos. Sobre ele esvoaçam anjos magníficos, de asas luminosas e espadas de diamante. A minha consciência salta de imediato para diante de mim e diz-me que eu não me chamo João, nem estou na ilha de Patmos, nem me alimento de gafanhotos. Fiquei sem palavras.

domingo, 17 de maio de 2020

Querido diário

Quando me dispus a escrever este texto fui assaltado pela ideia de que todos eles constituem um diário. Daí a imaginação cabriolou e após um salto mortal disse-me, com aquele sorriso cândido que todas as imaginações possuem, que lhe poderia chamar querido diário, como no filme do Moretti. Para dizer a verdade e assim demonstrar a autenticidade com que narro, nestes textos, as mais excruciantes aventuras de um narrador desavindo com o autor, confesso que grafei Nannetti, numa feliz fusão de Nanni e de Moretti. Isto não é um bom sintoma, mas há que ter paciência e aceitar a realidade como ela é. Uma coisa que me encanita – meu Deus, não poderia evitar estas derivas de gosto popular e escrever simplesmente irrita? – nos italianos é a duplicação de certas consoantes. Ainda não descobri o segredo porque umas vezes elas aparecem em pares e outras singulares. Terei de dar mais atenção aos nomes italianos, anoto na agenda onde escrevo todas aquelas coisas que quero fazer mas que, por certo, nunca farei. O vento agita os ramos da acácia, os pássaros cantam e oiço vozes ao longe, um murmúrio, como se escandissem orações, numa devoção em que as imagino de terço na mão. Percebo depois que veneram outra coisa e que se a têm, a piedade está disfarçada e oculta por afeições que me recuso a partilhar. Quando era adolescente, ainda não muito entrado nesse momento tenebroso da vida humana, a esta hora já teria saído da Missa e estaria a caminho de casa. O almoço naqueles dias era um pouco mais tarde, mas não tão tarde como vai ser o deste dia, em que uma mosca entrou pela janela aberta e se prepara para me encanitar. Hoje é domingo, dia 17 de Maio. A Direcção Geral de Saúde continua a emitir o boletim epidemiológico, a política volta lentamente, enquanto abro a boca e bocejo, não por causa da epidemia nem da política, mas porque a preguiça me tenta, ao estender-me as suas garras de algodão para que embalado na maciez lhe entregue corpo e alma. Vade retro.

sábado, 16 de maio de 2020

Da poligamia semântica

A buganvília púrpura exubera, mas a amarela parece moribunda, encostada a um pilar, incapaz de afastar o abraço sesgo com que a morte a está a enrolar, fazendo-lhe cair as flores, colorindo de castanho a folhagem, retirando o ânimo que lhe deu vida. Hoje caminhei pelos campos. Havia piteiras, algumas com figos arroxeados, alcachofras selvagens e pinheiros mansos a bordejar as estradas de terra batida, ainda com poças de água, pequenos lagos onde não há navegante que se aventure. As vinhas e os pomares de citrinos, animados por um espírito geométrico, prestavam culto ao velho Euclides, enquanto eu respirava um ar que já quase não sabia existir. Oiço a voz das minhas netas, combinam uma daquelas coisas que só as raparigas sabem o que é, enquanto o dia declina, com o Sol a esconder-se atrás de nuvens escuras. Há bocado trovejou, mas não choveu e os trovões envergonhados retiraram-se para longe. Na acácia que avisto, pousou um pássaro que não consigo identificar. Leio num livro sobre a arte de argumentar a injunção de que se use para cada termo um único sentido. O autor é adepto da monogamia semântica. Fico encantado com tamanha sabedoria, mas as línguas têm uma terrível inclinação para a poligamia e, por má fé e desobediência aos sábios conselhos dos filósofos, entregam-se à esquiva falácia da equivocidade e dotam os termos com mil sentidos, arquitectam armadilhas chamadas metáforas, metonímias, oximoros, paradoxos, hipálages e todo um poderoso arsenal com que bombardeiam os quartéis onde se acolitam os defensores da boa moral semântica. Desavergonhadas as línguas ainda têm a pretensão de que só assim se pode falar da realidade. O que tem tudo isto a ver com as buganvílias ou a combinações secretas das minhas netas? Nada, mas é o que acontece sempre que os homens abrem a boca e se põem a falar ou mexem os dedos para digitar o que lhes passa pela cabeça, se a têm. Hoje é sábado, dia 16 de Maio. Os dias continuam a crescer. Ao longe vejo uma palmeira que escapou à hecatombe que dizimou a espécie. Uma nuvem negra atravessa o meu campo de visão. Anuncia a noite empurrada por um vento melancólico. Pudera eu ser adepto da monogamia semântica e tudo seria mais fácil. Um banco seria um banco e nada mais que um banco, mas não falemos de coisas equívocas.

sexta-feira, 15 de maio de 2020

Aventuras no novo reino dos bonifácios

Um pastel de feijão. Estou  falar a sério, até um bolo trivial se tornou acontecimento digno de registo, pelo menos do meu. A necessidade de fazer uma escritura levou-me a Santarém, mesmo ao lado da Bijou, uma das célebres pastelarias da cidade. Acabado o acto burocrático, não resisti e, ao fim de mais de dois meses, comi um bolo de pastelaria, não dentro dela mas sentado no velho largo do seminário, como se fora um hippie fora de tempo e de lugar. Fazer uma escritura também não deixa de ser um assunto interessante. Parece uma reunião de um bando já com as máscaras postas pronto para o assalto. Aquilo que é um encontro entre pessoas de bem, mediado pelo representante da autoridade civil, que exercem a sua vontade em comprar e vender tornou-se uma estranha mancomunação para onde se vai disfarçado, temeroso, e de olhar desconfiado. O que um vírus faz às relações sociais. Prevejo já uma avalanche de doutoramentos em Sociologia do COVID-19, a que se hão-de juntar outros na Economia, na Psicologia e até na Antropologia. Outro ritual novo e inusitado, também um óptimo campo de trabalho para sociólogos e antropólogos, é a paragem numa estação de serviço de uma auto-estrada para ir a uma casa de banho. Há agora todo um conjunto de licenças a obter para se alcançar uma chave extraída de um sítio onde estava em desinfecção, que logo se tem de devolver para ser de novo desinfectada. Não só o mundo se tornou um lugar perigoso como um sítio onde haveremos todos de enlouquecer, para gáudio dos psiquiatras e psicanalistas, que também não estarão melhores do que os pacientes, mas têm mais experiência na arte do disfarce. O que valeu fui o pastel de feijão, mesmo comido na rua, mesmo transportando-me para o hippie que nunca fui. Hoje é sexta-feira, dia 15 de Maio. Onde me encontro neste momento há sol e ouvem-se pássaros, mas como tudo na vida também isso é passageiro. A próxima vez hei-de comer uma bola de Berlim, mesmo que isso desencadeie uma guerra com a balança ou me obrigue a uma declaração em favor do flower power. Até trautearei If you're going to San Francisco / Be sure to wear some flowers in your hair.

quinta-feira, 14 de maio de 2020

Bátegas de água e dicionários

Olho pela janela como se estivesse confinado. Um forte aguaceiro rompe o sossego com que o dia desliza para o fim. Uma bátega de água. Assaltou-me a curiosidade e fui tentar saber de onde vinha a palavra. Ela tem dois sentidos. Quando significa bacia, terá vindo do árabe bâtiya, mas se significa chuvada a origem obscurece-se. O dicionário da Porto Editora alvitra que pode ter vindo de bater. O Houaiss, apesar de sublinhar a origem controversa do vocábulo, adianta que é uma derivação por analogia. Imagino que seja a confissão de um acordo com o que diz o da Porto Editora, mas não afianço. Quando apareceu em Portugal, comprei o dicionário Houaiss. Seis volumes em papel com uma letra tão pequena que só de olhar para ela uma pessoa começa a fantasiar dores de cabeça. Há muito que não lhe toco. Comprei uma versão digital e é essa que utilizo. Evita-me dores de cabeça e o trabalho incerto de encontrar a palavra no seu lugar alfabético. Basta digitá-la e, como num filme de fantasia, ela aparece, com a informação, a idade e até a origem, mesmo se obscura. É um dicionário perfeito para quem se interesse por coisas inúteis. Qual o primeiro registo escrito conhecido de uma palavra? Ele informa. Bátega, 1525. Já bateria terá sido em 1546 e batente em 1456. Como se vê, este conjunto de inutilidades é de uma enorme importância num tempo em que as pessoas estão obrigadas ao jogo do confina e do desconfina, rodeadas de bátegas de água. O pior, e isso ocorre muita vezes, o dicionário recusa dar informação. Guarda-a para ele. É inútil discutir. Parou de chover. Em Portugal, segundo o Houaiss, chove por escrito desde 1262. No meu telemóvel pipocam mensagens. Sim, eu posso dar a informação. Pipoca, primeiro registo em 1781. Hoje é quinta-feira, dia 14 de Maio. O mês aproxima-se do meio, mas não entendo sequer o que quero dizer com isso. Desconfio que existe na sociedade uma ofensiva contra o calendário. Algum grupo radical está apostado em devolver-nos à pura duração, a esse momento paradisíaco em que ainda não tínhamos esquartejado o tempo para o contar. Talvez amanhã consiga escrever um texto menos idiota. Há que não desesperar.

quarta-feira, 13 de maio de 2020

O mundo das árvores

Há uma passagem do romance do italiano Giorgio Bassani, O Jardim dos Finzi-Contini, em que Micol se diverte à custa da suposta ignorância do narrador perante o mundo das árvores. Ela parece raptada pela nobreza desses seres mudos, ele diverte-se ostentando um não saber contumaz. Também eu sofro dessa ignorância e isso não é uma suposição. Não é que não goste de árvores. Gosto muito, mas falha-me a denominação, melhor falta-me saber adequar os nomes às espécies, pois a botânica é das coisas mais rasteiras que há em mim, que não sou desprovido de incontáveis saberes rasos. Há nomes magníficos nesse reino misterioso. Cedros, faias, olmos, lódãos, ulmeiros, bétulas, plátanos, salgueiros, todas estas árvores têm nomes que pedem que os escrevamos, tão magníficos eles são. Fantasio a possibilidade de criar toda uma literatura com esses nomes, explorar as características de cada árvore, dando-lhe uma alma racional e desejos humanos, criando-lhe genealogias, dotando-a de tradições e de traições. Isso porém seria fazê-la cair, expulsá-la do Éden onde habita e misturá-la ao mundo sombrio dos homens. Abstenho-me de pensar em tal coisa e dirijo-me à janela. Imagino-me que sou eu que passo na avenida, atravesso a passadeira e empurro a porta do bar. Debalde, ele continua fechado. Então volto para trás, perco-me na curva. Daí a pouco oiço a porta da rua a abrir e alguém a entrar. Sou eu. Reúno-me comigo mesmo, sento-me na secretária e olho o pequeno bosque da escola aqui ao lado. Os pinheiros estão mais copados e os cedros desenham cones secretos por amor à geometria. Hoje é quarta-feira, dia 13 de Maio. O mundo contínua envolto em estatística e até eu me entrego, por desfastio, a exercícios estatísticos. Vi na televisão umas imagens do santuário da Cova de Iria. Estava vazio, mas não oferecia a desolação que outros lugares de encontro das multidões oferecem quando ninguém os habita.

terça-feira, 12 de maio de 2020

Em estado catatónico

Tenho uma relação difícil com a burocracia. Possuirei alguns genes avariados, ou mais avariados do que a norma, que me colocam em estado catatónico mal tenha que tratar de guias, certificados, certidões e o mais que uma imaginação delirante passa a vida a conceber. Dou de barato o pagar e o repagar, mas a fina trama onde se tece toda a relação com o leviatã ultrapassa-me, excede a pobre inteligência que me foi concedida e activa em mim alguma hormona que me põe à beira de um colapso. É verdade que mesmo aqui se manifesta a minha propensão para hipérbole, e isso é ainda mais idiossincrático do que a desavença com a tirania da administração. Suspeito, mas é apenas uma suspeita, a existência na minha alma de uma herança anarquista. Algum avô longínquo, no segredo da sua juventude, terá sonhado terras sem poderes ordenadores. Por causa de tudo isto fui à rua, uma viagem sem sentido e quando cheguei ao destino o destino só se abriria para mim caso tivesse feito marcação. Sempre achei que não somos nós que marcamos a hora, mas talvez tenha existido alguma metamorfose ontológica e o destino se tenha tornado complacente dando a oportunidade de negociar a hora em que se dispõe a atender-nos. Ainda não me habituei à nova realidade e talvez viva num tempo que já acabou. Bem me esforço por bater à porta da nova era, mas as minhas pancadas são demasiado leves para que sejam escutados no reino nascente, onde as festas são de tal maneira luxuriantes que não há porteiro que escute quem quer entrar. Como se vê, a pendência burocrática não me dá ensejo a dizer seja o que for com nexo. O sol que encontrei na rua era desagradável, quente e doentio, havia nele catarro e um ar amarelado que não me dispôs melhor do que estava. A cidade cheia de carros, os castanheiros da marginal exuberavam na floração e não vi ninguém conhecido. Espero em desespero um email que me há-de salvar, indicar-me-á o caminho onde me esperarão umas guias que me hão-de conduzir à caixa multibanco ou, se tiver juízo, ao conforto do homebanking. E eu que queria falar da palavra cavanhaque e de um certo general francês, enrodilhei-me em mais uma triste história. Hoje é terça-feira, dia 12 de Maio. Ganhei o hábito de fazer de calendário e não há quem me faça perder o vício. Num apartamento vizinho alguém se apaixonou pelo aspirador e arrasta-o dengoso casa fora. Infinitas são as parafilias, mas recuso-me a fundamentar tal afirmação.