Há quem escreva longos poemas para desaparecer dentro deles, como se fossem um véu que a tudo ocultasse, o esconderijo seguro contra os bombardeiros inimigos que, a toda a hora, sobrevoam a cidade e deixam cair, sobre as cabeças incautas, bombas ovaladas. Estas explodem com o barulho de um cataclismo, ensurdecendo a população, dando vida à palavra catástrofe, fazendo florir em bocas desdentadas vocábulos como desgraça, desdita, desastre. Ainda é cedo para que alguém diga tragédia, pensa o poeta que, com a sua inclinação lírica, não tem um estro trágico. As deflagrações ouvem-se a grande distância, mas, ao longe, ninguém vê a fragmentação das casas, o estilhaçar dos vidros, a queda das paredes, os corpos despedaçados, as loiças escaqueiradas ou o poeta a tecer o poema, onde se esconde, traçando um labirinto, para que nele o inimigo, a que Ariadne nenhuma concederá o fio da vida, se perca e, com o passar dos dias, morra de fome, deixando um cadáver cada vez mais ressequido, que alguém milénios depois encontrará. Não me perguntem porque escrevi isto, pois não faço ideia. Uma razão plausível diz-me que não me tendo ocorrido mais nada aproveitei estas palavras que me foram saindo dos dedos, entraram pelas teclas e desabrocharam no monitor. A maior parte das coisas que acontecem acontecem assim, sem que os seus autores façam qualquer ideia da razão. Outra hipótese, a que não faltará verosimilhança, é que tudo se deva aos astros, a uma conjugação enviesada entre o Sol e a Lua, talvez a um amuo de Júpiter, ao rancor de Marte ou ao desejo de Vénus. Ó Afrodite Citereia! Esta exclamação pontuada é uma saudação, um tributo, quase uma oração. Não me peçam explicações. Hoje é sábado, dia 30 de Maio. O mês colocou o pescoço na guilhotina, espera apenas que o carrasco acerte as contas do serviço, coisa a que a arte de regatear trará a sua demora. São soturnas as metáforas que me ocorrem neste início de tarde.
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