Nada o homem receia mais do que ser tocado pelo
desconhecido. É com esta frase que começa o longo ensaio Massa e Poder, de Elias Canetti. Este pavor é o horizonte onde se
desenrolam as vidas humanas. A maior parte do tempo nem damos pela a existência
dele, mas se algo desconhecido nos toca, ele lança as garras de fora e o homem
treme e teme. Talvez tenhamos aceitado sem grandes problemas este tempo de
confinamento devido ao pânico que o desconhecido desencadeia nos nossos
organismos. Depois, como em tudo, cansamo-nos e, intrépidos, enfrentamos o
desconhecido, ou imaginamo-lo conhecido e o medo de por ele ser tocado vai-se
desvanecendo, não porque se é corajoso mas porque o hábito venceu o estado de
vigilância. Aos sábados dever-se-iam evitar estas meditações, não porque traiam
melancolia mas por serem sérias. O dia está quente, mas temperado pelo vento
que faz balançar os ramos das oliveiras e refresca a atmosfera. No friso das
orquídeas, a branca ainda tem flores, mas a folhagem está a amarelecer devido
ao esforço contínuo em florir. Fora ela mulher e seria mãe de vinte filhos. É
um enigma ela estar neste estado há bem mais de um ano e continuar a rebentar.
Imagino que também ela terá medo do desconhecido e por isso se protege na
caverna da floração. Se não estivesse mole, com os neurónios lânguidos, devido
ao calor, esforçar-me-ia por encontrar uma metáfora mais reluzente. Tenho
estado a ouvir Palestrina. Este tem uma peça denominada Missa do Homem Armado. Isso lembrou-me um outro músico italiano,
quarenta anos mais novo, Don Carlo Gesualdo, Príncipe de Venosa, que assassinou
a mulher, Maria d’Avalos, e fez assassinar o amante desta, Fabrizio Carafa,
Duque de Andria, ao apanhá-los em flagrante. Um crime de honra que animou os
finais do XVI. A primeira vez que ouvi a sua música, interpretada pelo The Hilliard
Ensemble, pensei que só um anjo luminoso a poderia ter composto. Muitas são as
trevas que se escondem na luz. Hoje é sábado, dia 23 de Maio. A tarde começa a
perder o fulgor e, não tarda, dobrará o joelho para que o inexorável carrasco a
decapite e a entregue ao reino das coisas que passaram. Também Maria d’Avalos
teria a sua luz e não terá tido tempo para perder o fulgor. Não devia ter
casado com o primo.
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