Quando me dispus a escrever este texto fui assaltado pela
ideia de que todos eles constituem um diário. Daí a imaginação cabriolou e após
um salto mortal disse-me, com aquele sorriso cândido que todas as imaginações
possuem, que lhe poderia chamar querido diário, como no filme do Moretti. Para
dizer a verdade e assim demonstrar a autenticidade com que narro, nestes textos,
as mais excruciantes aventuras de um narrador desavindo com o autor, confesso
que grafei Nannetti, numa feliz fusão de Nanni e de Moretti. Isto não é um bom
sintoma, mas há que ter paciência e aceitar a realidade como ela é. Uma coisa
que me encanita – meu Deus, não poderia evitar estas derivas de gosto popular e
escrever simplesmente irrita? – nos italianos é a duplicação de certas
consoantes. Ainda não descobri o segredo porque umas vezes elas aparecem em
pares e outras singulares. Terei de dar mais atenção aos nomes italianos, anoto
na agenda onde escrevo todas aquelas coisas que quero fazer mas que, por certo,
nunca farei. O vento agita os ramos da acácia, os pássaros cantam e oiço vozes
ao longe, um murmúrio, como se escandissem orações, numa devoção em que as
imagino de terço na mão. Percebo depois que veneram outra coisa e que se a têm,
a piedade está disfarçada e oculta por afeições que me recuso a partilhar.
Quando era adolescente, ainda não muito entrado nesse momento tenebroso da vida
humana, a esta hora já teria saído da Missa e estaria a caminho de casa. O
almoço naqueles dias era um pouco mais tarde, mas não tão tarde como vai ser o
deste dia, em que uma mosca entrou pela janela aberta e se prepara para me
encanitar. Hoje é domingo, dia 17 de Maio. A Direcção Geral de Saúde continua a
emitir o boletim epidemiológico, a política volta lentamente, enquanto abro a
boca e bocejo, não por causa da epidemia nem da política, mas porque a preguiça
me tenta, ao estender-me as suas garras de algodão para que embalado na maciez lhe
entregue corpo e alma. Vade retro.
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