domingo, 31 de maio de 2020

Os falsos caminhantes

Hoje já andei seis quilómetros. Quase parecia um caminhante, mas ainda não consigo disfarçar o velho sedentário que habita no meu corpo. As almas podem ser classificadas sob diversos critérios, o que dá origem a um sem número de taxionomias e não menos controvérsias. Isto é do conhecimento geral, não estou a dar nenhuma novidade. Uma das classificações divide-as em dois tipos. Almas sedentárias e almas nómadas. A minha é completamente sedentária e quando me ponho a caminhar pelas ruas vê-se logo que se está perante uma falsificação. Se não o dizem abertamente é por convenção social, mas os verdadeiros caminhantes, ao verem-me, pensam lá vai um a tentar enganar meio mundo, sabe lá ele o que é caminhar. Têm razão, não sei, não faço a mínima ideia. Hoje andei mais de uma hora a falsificar a realidade, a disfarçar-me de andarilho, de alguém que se treina para fazer uma longa peregrinação ou então que há-de acabar na ignomínia de ser um turista que abre a boca por tudo o que é sítio, depois fecha-a e faz umas fotografias, para mais tarde recordar, embora não tenha nada para recordar. Os lugares também têm almas e estas são avaras e avessas a darem-se a conhecer à alma nómada do turista. O melhor é evitar estas meditações, não vão pensar que sou algum sociólogo. Tenho muitos pecados e defeitos, mas não esse. Imagino que vou almoçar tarde. Aproveito para pôr algum trabalho em ordem e assim infringir o descanso dominical. Os pássaros meus vizinhos estão hoje dados à garrulice. Tagarelam sem parar. Tento perceber o motivo da conversa, mas não tenho ido às aulas sobre a linguagem dos pássaros e o essencial da disputa passa-me ao lado. Como é habitual, também isto não é novidade. Hoje é domingo, dia 31 de Maio. O mês está a acabar e não sei o que hei-de dizer dele. O mais sensato é seguir uma instrução proverbial escutada na longínqua infância. O calado vence tudo. Não me recordo de ser loquaz, mas nunca se sabe.

4 comentários:

  1. Alma nómada a minha. Nunca fico mais de um mês seguido num lugar. E caminho como se não houvesse fim...
    ~CC~

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    1. Não sou propriamente avesso à viagem, embora viajar não seja o que uma coisa que me entusiasme como acontece com outras pessoas, para quem viajar é essencial.

      HV

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  2. A minha alma é nómada, sempre tive vontade de dar a volta ao mundo (pobre pateta). Fiz o que consegui fazer e quando vim aqui para o interior, pelo menos dois sábados por mês, saía de madrugada à descoberta de Portugal e da zona raiana de Espanha.
    E descobri sítios incríveis, locais encantadores aonde ninguém ia.
    Talvez por isso me custe tanto e me sinta tão doente por não poder sair de casa. E não tem nada a ver com o vírus, o meu confinamento já dura há cerca de ano e meio e a falte de sol e exercício está a ser muito difícil.
    Não deixe de caminhar, HV, ainda que pareça não fazer sentido nenhum.
    E agora lembrei-me do Antonio Machado. :))
    Já começou a chover e a trovejar: outra espécie de inferno.

    Bom resto de domingo.
    🌻
    Maria

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    1. Preciso mesmo de caminhar, embora nem sempre me apeteça. Os apetites, como se sabe, nem sempre são bons conselheiros.

      Espero que possa voltar a poder sair e a fazer as suas explorações nómadas.

      Bom resto de domingo.

      HV

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