Nunca sabemos a data em que uma vida muda, foi o que pensei
ao consultar o calendário. Nicolau II, da Rússia, foi coroado a 26 de Maio de
1896, não sabia ele que isso lhe iria marcar a fortuna e que o levaria a uma
morte infeliz e prematura, porque alguém, talvez sem saber o que fazer dele, se
lembrou de a antecipar. Vejo-o a ser coroado, rodeado pela corte, num quadro de
Serov e quase sinto vontade de lhe gritar para fugir dali, que renuncie à coroa
e vá dar uma volta pelo mundo com a Feodorovna. Calo-me, pois ele não me
ouviria. Somos sempre surdos para as palavras do destino, as potestades mais do
que os outros mortais. A cidade vai retomando os seus ruídos e rumores, o
gorgolejar da vida, o trânsito que se adensa, as gentes que se tomam de calores
e, mesmo de máscara cingida, se despem para o Verão antecipado. Chegou-me um
vídeo do meu neto. Sobe para uma cadeira, dali trepa para a cadeira de
refeição, senta-se no tabuleiro e pega num livro. Abre-o e faz um discurso,
como se lesse na mais estranha das línguas. Isto gerou um conflito de
interpretações acerca da performance
da criança. A avó ficou encantada com a teatralidade da leitura e o avô com a
destreza da subida. Homens e mulheres vêem o mundo de lugares diferentes, disse
eu, mas não estou certo se, ao escrevê-lo, não estarei a ofender algum
imperativo igualitário. Nestes dias, contentamo-nos com poucas coisas. Ontem
anotei que tinha de encolher estes textos. Até a mim me cansam. Hoje é
terça-feira, dia 26 de Maio. Outro mês que declina e com ele também a Primavera
começa a preparar as malas para um novo exílio. Os anjos insistem em
disfarçar-se de pássaros. Eu finjo que me iludem, mas sei muito bem que não são pássaros.
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