O que me vale é que não tarda e estou a caminho de casa. O
texto começa mal. Não devia ter vindo ao campo. Cansa-me tanto bucolismo
mecânico. Motores por todo o lado, numa imitação infernal da música minimal
repetitiva, composta por alguém à beira da loucura. Fala-se do campo e as
pessoas imaginam cenas idílicas com pastoras e pastores, longos interlúdios
musicais e fogosos amplexos amorosos, ao som do chocalhar dos rebanhos e do
canto dos pássaros, como se aquilo fosse o jardim do Éden, cujas portas
tivessem sido reabertas. Não foram. Na cidade, ao menos respiramos um ar
poluído autêntico e sujeitamo-nos ao ruído, pois nunca nos foi prometido outra
coisa, a não ser o desatino desenfreado, o vício sem controlo, a maldição
eterna. Falo assim, como se vivesse numa grande metrópole, mas a minha cidade é
uma aldeia pequena, num recanto da província, onde passa um rio afável, em
cujas margens pescadores apanham peixes que logo devolvem ao fio de água que
serpenteia entre o casario. O campo não faz bem à escrita, puxa-me para o lugar
comum, aviva o provincianismo que me habita. Apiedo-me de mim. O fim-de-semana
caiu-me em cima e ainda não sei bem o que fazer com ele. Dos escritores
neo-realistas, há um de que gosto bastante, talvez o único. Carlos de Oliveira.
Pensava que tinha toda a sua obra e hoje descobri, já nem sei bem porquê, que
me falta o segundo romance, Alcateia.
Não sei se ele o renegou, pois os escritores têm destas coisas. Fazem filhos e
depois recusam-se a reconhecê-los. Talvez me ponha em campo e descubra a matilha
de lobos. Existirão outros encontros bem mais perigosos, podem crer. Hoje é
sexta-feira, dia 29 de Maio. Não faço ideia para que serve contar os dias, como
se existissem dias, semanas, meses, anos. Uma voz vinda dentro de mim diz-me
não sejas idiota, se não fossem contados, não existiriam. Continua a contar, ou
queres acabar com o tempo. Não percebi a agressividade da voz, mas obedeço.
Pois é, os citadinos imaginam cenas idílicas, que no campo é que se está bem, calma e tranquilidade e tal (lembram-me aqueles senhoritos que iam para a Comporta brincar aos pobrezinhos), mas a verdade é que a vida no campo pode ser um inferno.
ResponderEliminarSem transportes, sem comércio local, com a barulho infernal das maquinetas agrícolas, sem rede móvel de jeito - ah e quanto a privacidade, estamos conversados.
Gostava de os ver a viver no campo em confinamento, mas era à moda antiga: sem água, sem luz, (telefone? televisão? rede móvel? Net? Credo, o que é isso?); lâmpadas, "Frigorifo", máquina de lavar roupa???
Bem, vou parar, até porque eu só conheci este tipo de vida quando era muito pequenita e vinha cá de férias. E achava o máximo quando ficávamos no moinho de um tio-avô à beira do rio Ocreza... pudera, era só por uns dias :))
Bom Domingo, HV.
🌻
Maria
É verdade, há muito que julgo que a vida no campo pode ser um verdadeiro inferno. Que nem o ar puro será lá muito puro, com o uso da agricultura química. Isto para não falar nos motores. É muito engraçado passear entre vinhas, mas se a coisa passa do passeio, a graça começa a perder-se.
EliminarUm bom domingo,Maria
HV
Não entro na contenda campo-cidade, como escrevi acima, nómada como sou, gostaria de estar ora num ora no outro. Mas Gosto do Carlos de Oliveira, creio que "uma abelha na chuva" é um dos grandes romances do século XX.
ResponderEliminar~CC~
Já li esse romance há muito, como os outros com excepção de Alcateia. Vou relê-los, estou a acabar Casa na Duna. Penso que me entusiasmou muito mais quando o li há 40 anos. Não me lembrava já da intriga, como não me lembro da dos outros romances do autor.
EliminarHV
Foi assunto de discussão há dois dias entre nós, família mais chegada: há livros que não esquecemos e outros é que se nunca os tivéssemos lido. Por exemplo, esqueci todos os da Lídia Jorge (e gosto dela) e nunca esqueci Sinais de Fogo (Jorge de Sena) que já li há uns 30 anos...razões?!
ResponderEliminar~CC~
Talvez porque o romance de Jorge de Sena é o melhor romance português do século XX, apesar de inacabado.
EliminarHV
E eu nunca o li os Sinais de Fogo. Do Sena, para além de alguns dispersos, apenas li Antigas e Novas Andanças do Demónio e 80 Poemas de Emily Dickinson.
ResponderEliminarDo Carlos de Oliveira: Casa na Duna e uma Abelha na Chuva.
Um bom dia para ambos.
🌻
Maria
Sinais de Fogo é um grande romance. Vale mesmo a pena.
EliminarUma boa tarde
HV