segunda-feira, 25 de maio de 2020

Paisagens despovoadas

Uma algazarra lá em baixo, mas as vozes calaram-se de imediato e tudo voltou ao silêncio que tem, não sem insídia, marcados os últimos tempos. Continuamos cercados por estatísticas e profecias, numa loquacidade que ainda não esmoreceu, numa facúndia que não sofre desânimo. Cada espécie grasna à sua maneira e a nossa não é excepção. A escola aqui ao lado deve ter alunos, mas ainda não os avistei. Ter-se-ão contraído até se tornarem uma sombra que evita chocar contra outra, não vá acontecer uma faísca e logo um incêndio. A janela aberta deixou-me ouvir alguém espirrar num apartamento contíguo. Hoje já videoconferenciei por duas vezes, o que me ocupou a manhã. Medito sobre estes textos e pergunto-me se não me tornei num insuportável misantropo. Não tenho heróis nem vilões, não descubro personagens a quem dar vida, como se estivesse apenas interessado em paisagens das quais, para sua salvação, vou eliminando a humanidade. Imagino-me a escrever romances apenas compostos por paisagens, sem presenças humanas mas com acção. Árvores e animais tomam a palavra, arquitectam traições e assassínios. Os elementos animam-se e dotados de alma falam. A água e o fogo disputam entre si, a terra e o vento proclamam, uma, a excelência da imobilidade, e, o outro, a primazia da inconstância. Outras vezes são os móveis que tomam a palavra. As cadeiras discordam, as mesas marcham em protesto e até um aparador julga ter direito a exprimir uma opinião que ninguém lhe pedira. À minha frente tenho a terceira edição de um dos mais extraordinários romances escrito em língua portuguesa, Finisterra – paisagem e povoamento, de Carlos de Oliveira. Comprei-o em Lisboa no dia 9 de Outubro de 1979. Nesses dias ainda assinava os livros que comprava e registava o dia da aquisição. Depois o amor à propriedade e ao calendário feneceu. Leio: Ao fim da tarde, um último raio de sol embate no nódulo da vidraça, pulveriza-se em coágulos brancos, dispersa-se pelos cantos do quarto. E em tudo isto há tal perfeição que acho uma bênção não ter personagens nos meus textos. Hoje é segunda-feira, dia 25 de Maio. A rede mosquiteira que me protege da invasão dos insectos está caída, será sensato ir compô-la, antes que um exército de melgas encontre por aqui o seu campo de combate. Talvez amanhã descubra alguma personagem para me alegrar a narrativa. Tenho de cortar no tamanho dos textos, anoto.

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