Uma algazarra lá em baixo, mas as vozes calaram-se de
imediato e tudo voltou ao silêncio que tem, não sem insídia, marcados os
últimos tempos. Continuamos cercados por estatísticas e profecias, numa
loquacidade que ainda não esmoreceu, numa facúndia que não sofre desânimo. Cada
espécie grasna à sua maneira e a nossa não é excepção. A escola aqui ao lado
deve ter alunos, mas ainda não os avistei. Ter-se-ão contraído até se tornarem
uma sombra que evita chocar contra outra, não vá acontecer uma faísca e logo um
incêndio. A janela aberta deixou-me ouvir alguém espirrar num apartamento
contíguo. Hoje já videoconferenciei por duas vezes, o que me ocupou a manhã. Medito
sobre estes textos e pergunto-me se não me tornei num insuportável misantropo.
Não tenho heróis nem vilões, não descubro personagens a quem dar vida, como se
estivesse apenas interessado em paisagens das quais, para sua salvação, vou
eliminando a humanidade. Imagino-me a escrever romances apenas compostos por
paisagens, sem presenças humanas mas com acção. Árvores e animais tomam a
palavra, arquitectam traições e assassínios. Os elementos animam-se e dotados
de alma falam. A água e o fogo disputam entre si, a terra e o vento proclamam, uma,
a excelência da imobilidade, e, o outro, a primazia da inconstância. Outras
vezes são os móveis que tomam a palavra. As cadeiras discordam, as mesas
marcham em protesto e até um aparador julga ter direito a exprimir uma opinião
que ninguém lhe pedira. À minha frente tenho a terceira edição de um dos mais
extraordinários romances escrito em língua portuguesa, Finisterra – paisagem e povoamento, de Carlos de Oliveira.
Comprei-o em Lisboa no dia 9 de Outubro de 1979. Nesses dias ainda assinava os
livros que comprava e registava o dia da aquisição. Depois o amor à propriedade
e ao calendário feneceu. Leio: Ao fim da
tarde, um último raio de sol embate no nódulo da vidraça, pulveriza-se em
coágulos brancos, dispersa-se pelos cantos do quarto. E em tudo isto há tal
perfeição que acho uma bênção não ter personagens nos meus textos. Hoje é
segunda-feira, dia 25 de Maio. A rede mosquiteira que me protege da invasão dos
insectos está caída, será sensato ir compô-la, antes que um exército de melgas
encontre por aqui o seu campo de combate. Talvez amanhã descubra alguma
personagem para me alegrar a narrativa. Tenho de cortar no tamanho dos textos,
anoto.
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