sábado, 16 de maio de 2020

Da poligamia semântica

A buganvília púrpura exubera, mas a amarela parece moribunda, encostada a um pilar, incapaz de afastar o abraço sesgo com que a morte a está a enrolar, fazendo-lhe cair as flores, colorindo de castanho a folhagem, retirando o ânimo que lhe deu vida. Hoje caminhei pelos campos. Havia piteiras, algumas com figos arroxeados, alcachofras selvagens e pinheiros mansos a bordejar as estradas de terra batida, ainda com poças de água, pequenos lagos onde não há navegante que se aventure. As vinhas e os pomares de citrinos, animados por um espírito geométrico, prestavam culto ao velho Euclides, enquanto eu respirava um ar que já quase não sabia existir. Oiço a voz das minhas netas, combinam uma daquelas coisas que só as raparigas sabem o que é, enquanto o dia declina, com o Sol a esconder-se atrás de nuvens escuras. Há bocado trovejou, mas não choveu e os trovões envergonhados retiraram-se para longe. Na acácia que avisto, pousou um pássaro que não consigo identificar. Leio num livro sobre a arte de argumentar a injunção de que se use para cada termo um único sentido. O autor é adepto da monogamia semântica. Fico encantado com tamanha sabedoria, mas as línguas têm uma terrível inclinação para a poligamia e, por má fé e desobediência aos sábios conselhos dos filósofos, entregam-se à esquiva falácia da equivocidade e dotam os termos com mil sentidos, arquitectam armadilhas chamadas metáforas, metonímias, oximoros, paradoxos, hipálages e todo um poderoso arsenal com que bombardeiam os quartéis onde se acolitam os defensores da boa moral semântica. Desavergonhadas as línguas ainda têm a pretensão de que só assim se pode falar da realidade. O que tem tudo isto a ver com as buganvílias ou a combinações secretas das minhas netas? Nada, mas é o que acontece sempre que os homens abrem a boca e se põem a falar ou mexem os dedos para digitar o que lhes passa pela cabeça, se a têm. Hoje é sábado, dia 16 de Maio. Os dias continuam a crescer. Ao longe vejo uma palmeira que escapou à hecatombe que dizimou a espécie. Uma nuvem negra atravessa o meu campo de visão. Anuncia a noite empurrada por um vento melancólico. Pudera eu ser adepto da monogamia semântica e tudo seria mais fácil. Um banco seria um banco e nada mais que um banco, mas não falemos de coisas equívocas.

2 comentários:

  1. Nunca vi buganvílias amarelas, apenas as conheço em tons de lilás, vermelho e branco. Tive uma lilás durante muitos anos (plantada por mim), mas teve que ser arrancada, cresceu muito, estava linda, mas também estava a incomodar um vizinho...
    Há muitas piteiras por aqui, com figos vermelhos e amarelos. Em Lisboa, teenager, costumava saltar as fogueiras (coisa idiota e perigosa, algumas eram bem altas, mas eu não tinha medo e nunca caí); nessa alturas queimávamos alcachofras, que enterrávamos num vaso (a pensar num ou mais rapazes). Depois era só esperar para ver se floriam ou murchavam, o que significava que éramos amadas ou não :)
    Que patetas éramos...

    E que bom já ter as netas por perto.

    Boa noite, HV.
    🌻
    Maria


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    1. Buganvílias amarelas, laranjas, roxas, vermelhas. Há de várias cores. As fogueiras eram uma instituição nacional, que foi declinando até desaparecer. Não sei se à inocência se deva chamar patetice. Não o seria, mas apenas o espírito do tempo. Só isso.

      Um boa noite.

      HV

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