quarta-feira, 27 de maio de 2020

Trocas neuronais

A primeira palavra que escrevi continha um erro ortográfico, fruto de uma associação que poupo aos leitores. Fiquei a olhar para o teclado e para dentro de mim, perguntando-me que estranhas conexões se passaram na mente para que os dedos, sem quererem saber da ordem que lhes dera, conquistassem autonomia para se submeterem a um outro senhor, cujos impulsos sendo meus me escapam. Sim, a psicanálise também vive disso, embora o caso seja já mais do foro do neurologista. O telhado esbranquiçado, talvez um cinza muito claro, do pavilhão desportivo da escola vizinha reverbera batido pela impiedade dos raios solares. Oiço uma máquina em manobras, talvez numas obras por perto, mas não a avisto. O dia desliza quente e sorrateiro. Na rua estão 34 graus e nem as sombras me convidam para sair de casa, embora o arvoredo da Sá Carneiro esteja exuberante. Por vezes os erros preocupam-me, não pela ortografia, mas por aquilo que eles revelam do estado do meu aparelho neuronal, caso possua um, coisa por provar. Os livros das estantes que me rodeiam têm o condão de me irritar. Não por eles, mas pelas ilusões que me levaram a comprá-los. Talvez exista em mim um pendor masoquista, pois os livros com os quais estou reconciliado estão longe da vista. À minha volta só fantasias e quimeras. Isso, porém, não interessa a ninguém e, além do mais, pode nem corresponder à verdade. Hoje é quarta-feira, dia 27 de Maio. As acácias já esconderam debaixo das folhas os ramos que o Inverno despira. Há árvores que não cultivam o pudor, a primeira das virtudes públicas que qualquer um deve ostentar para não cansar os outros. Os pássaros não se calam, numa cegarrega interminável. Podiam ir cantar para outra rua, mas essa já deve ter os seu tenores.

2 comentários:

  1. Gosto da palavra cegarrega.
    Hoje entrou uma andorinha na minha sala. Entrou pela metade da janela que estava aberta e, ao ver-me, tentou sair pela metade que estava fechada; debalde.
    Lá tive que lhe ir dar uma mãozinha para ela parar de dar cabeçadas no vidro e sair, a cem à hora, não sem antes me deixar um presentinho no parapeito interior.
    Ainda assim, gostei muito da visita. Mesmo

    Boa noite,
    🌻
    Maria

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    Respostas
    1. Por aqui não vejo andorinhas. Prédios na cidade não lhe serão habitat favorável.

      Por enquanto, as espécies que habitam por aqui mantêm-se respeitadoras das fronteiras.

      Boa noite

      HV

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