Tinha desde há dias um caixote por abrir com uns vinte livros. Comprei-os nesses leilões que existem em sites onde se vende de tudo, pelo menos é o que imagino. O alfarrabista leiloeiro nunca tem pressa. Pode estar meses sem dar sinal de vida, a não ser colocar livros na página do leilão. As pessoas fazem os lances, o tempo do leilão expira e ele nem dá sinais de que respira. Depois, inopinadamente, lembra-se de visitar o site e envia uma mensagem com o preço a pagar e um pedido de desculpas mais ou menos inverosímil. Já mudou de casa, já esteve doente várias vezes. Se ele nunca tem pressa para receber, o mesmo não se pode dizer do envio. Mal são pagos os livros, ele remete-os sem mais demoras. A princípio estranhei o modus operandi, mas depois habituei-me e agora faço palpites para saber ao fim de quantos meses ele vai tornar a contactar comigo e, presumo, com os restantes compradores. Não era disto que queria falar, mas da minha decepção ao abrir o caixote e manusear os livros. Tinha a esperança de que num ou noutro houvesse lá qualquer coisa do anterior proprietário, uma dedicatória, uma anotação, uma lista de compras esquecida, talvez uma carta de amor. Não encontrei nada, a não ser, em dois livros, o ex-libris do seu proprietário: Pelo sonho é que vamos, um verso de Sebastião da Gama. Não parece muito original. Omito o nome do suposto proprietário por uma questão de protecção de dados, embora possa confiar ao público as obras e respectivos autores. Tratam-se de Gaimirra (1946), uma recolha de contos de Antunes da Silva, e Bárbara Casanova (1954), um romance de Maria da Graça Azambuja, pseudónimo de Maria da Graça Freire, irmã da escritora Natércia Freire. Como se pode constatar, continuo a rodear-me de livros que ninguém lê. Também eu corro o risco de não os ler, mas hei-de tentar, mesmo que vá procrastinando. Agora, vou postar-me em frente da janela e ver a noite cair, apesar da iluminação pública, já acesa, me estragar o espectáculo. Sempre podia chover.
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