Já há muito que não ouvia o telefone fixo tocar. De tal maneira que demorei alguns segundos a perceber que era ele que estava a dar sinal. Corri para o atender, mas ao levantá-lo da base, ele apagou-se, literalmente. De tanto não ser usado, presumo que decidiu entregar-se a um hara-kiri. Ao menos morro com honra, terá pensado. Fiquei sem saber quem terá ligado, mas o mais provável é que fosse um engano. As pessoas que me ligavam para o fixo já deixaram de ligar seja para onde for. A não ser que alguém tenha tido uma reminiscência e tenha decidido usar o fixo para dar vazão ao que lhe iria, na altura, na memória. Aqui que ninguém nos ouve, dispenso reminiscências. Alguém que tenha memórias, boas ou más, que as guarde para si, que é aquilo que eu faço. A memória tornou-se para este narrador sem narrativa uma questão melindrosa, pois coisas que nela deveria guardar, caso sejam recentes, nem à porta chegam. São esquecidas de imediato. Outras, com muito tempo, parecem manter-se inalteradas, depois há aquelas que jogam à cabra-cega. Imaginemos que estou a falar com alguém e quero dar a referência de um romance de que muito terei gostado. Por exemplo, Sinais de Fogo, de Jorge de Sena. Pode acontecer que me ocorra o título, mas não o autor. Posso chegar a dar informações tão precisas como o ano da morte de Sena, o facto de ter vivido exilado no Brasil e na Califórnia, mas não me ocorrer o nome. Pode acontecer que não me ocorra o título e começar a contar episódios, entregando-me a um devaneio perifrástico. A isto chamo jogo da cabra-cega. Pode parecer uma analogia forçada, mas é o que sinto que a memória faz comigo. Isto pode ter terríveis implicações quanto ao estatuto de verdade das façanhas que por aqui conto. Neste momento oiço alguém dizer ó (nome da minha neta mais nova) larga os cabelos e pensa. O que ela deve pensar é um assunto de geometria. Será, porém, que isto aconteceu mesmo, que a minha pobre neta estava a segurar os cabelos em vez de pensar? Independente dos estatutos ontológico do acontecimento e epistémico da minha afirmação, o caso não deixa de levantar um problema interessante: por que motivo segurar os cabelos impede os neurónios de se entregarem apaixonadamente a amplexos sinápticos?
Sinais de Fogo é inesquecível...ou pelo menos um dos que nunca esqueci:)
ResponderEliminar~CC~
É verdade. Para mim o melhor romance português do século XX. Dos que li, claro.
EliminarHV