Talvez por ser um ser de ficção, um mero narrador, o mais
das vezes sem narrativa, aquilo que o 14 de Juillet me faz de imediato lembrar
não é a tomada da Bastilha, uma espécie de pontapé de saída para a Revolução
Francesa, mas uma fotografia de Robert Doisneau com o título La dernière
valse du 14 de Juillet, 1949. Nela, um par dança solitário num recanto de
Paris, imagino, enquanto a noite se apodera da cidade. Homem e mulher rodopiam
no enlevo do seu próprio movimento, talvez numa paixão de súbito incendiada,
indiferentes à solidão que os cerca. É verdade que as festas de 14 de Julho são
comemorações dessa tomada da Bastilha, mas é possível que um facto da minha
existência se prenda a essa fotografia. Não se imagine – e não há nada mais
fácil do que deixar a imaginação à solta – que também eu dancei num 14 de
Juillet. Uma impossibilidade, mas as fotografias, quadros ou poemas podem
ligar-se a nós – ou nós a eles – por motivos muitos diferentes de uma analogia
ou de uma imitação. O Word está a irritar-me. Escrevi mais acima um par
dança, e ele insiste em sublinhar a expressão com dois traços azuis e a
sugerir alteração para uma par dança. Talvez par tenha mudado de
género e eu não tenha sido informado. São coisas que acontecem, talvez com mais
regularidade do que se pensa. Também é possível que o Word ainda não saiba
distinguir entre nome e adjectivo. Continuo muralhado em casa. O inimigo não
descansa e dardeja calor como se quisesse abrasar o mundo, que por si já anda
abrasado. Fecho os olhos, vejo o par de Doisneu a rodopiar, a saia da rapariga
a flutuar e espero que uma frente fria se abata não sobre Paris, mas sobre este
pobre país submerso numa onda gigante de calor, para que também ele tenha a
possibilidade de dançar uma última valsa antes do fogo acabar com ele. Retornou
aquela minha propensão para a hipérbole.
quinta-feira, 14 de julho de 2022
A última valsa
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário