quinta-feira, 14 de julho de 2022

A última valsa

Talvez por ser um ser de ficção, um mero narrador, o mais das vezes sem narrativa, aquilo que o 14 de Juillet me faz de imediato lembrar não é a tomada da Bastilha, uma espécie de pontapé de saída para a Revolução Francesa, mas uma fotografia de Robert Doisneau com o título La dernière valse du 14 de Juillet, 1949. Nela, um par dança solitário num recanto de Paris, imagino, enquanto a noite se apodera da cidade. Homem e mulher rodopiam no enlevo do seu próprio movimento, talvez numa paixão de súbito incendiada, indiferentes à solidão que os cerca. É verdade que as festas de 14 de Julho são comemorações dessa tomada da Bastilha, mas é possível que um facto da minha existência se prenda a essa fotografia. Não se imagine – e não há nada mais fácil do que deixar a imaginação à solta – que também eu dancei num 14 de Juillet. Uma impossibilidade, mas as fotografias, quadros ou poemas podem ligar-se a nós – ou nós a eles – por motivos muitos diferentes de uma analogia ou de uma imitação. O Word está a irritar-me. Escrevi mais acima um par dança, e ele insiste em sublinhar a expressão com dois traços azuis e a sugerir alteração para uma par dança. Talvez par tenha mudado de género e eu não tenha sido informado. São coisas que acontecem, talvez com mais regularidade do que se pensa. Também é possível que o Word ainda não saiba distinguir entre nome e adjectivo. Continuo muralhado em casa. O inimigo não descansa e dardeja calor como se quisesse abrasar o mundo, que por si já anda abrasado. Fecho os olhos, vejo o par de Doisneu a rodopiar, a saia da rapariga a flutuar e espero que uma frente fria se abata não sobre Paris, mas sobre este pobre país submerso numa onda gigante de calor, para que também ele tenha a possibilidade de dançar uma última valsa antes do fogo acabar com ele. Retornou aquela minha propensão para a hipérbole.

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