Tinha um dente de ouro, juro que tinha. Não seria muito alto, mas era largo de ombros e dono de uma voz cheia. Vendia qualquer coisa. Pão. Sim, era padeiro. Tinha uma padaria e uma mercearia anexa. Distribuía o pão, que cozia num forno próprio, pela aldeia e outros lugarejos limítrofes. Quando na distribuição do pão, era jovial para com as clientes. Falava alto e convicto, mas aquilo de que me recordo bem é o dente de ouro. Na mesma aldeia, havia outro homem com dente de ouro, mas já não me lembro do que fazia. Talvez fosse demasiado velho para fazer alguma coisa. Tinha umas laranjas raiadas de vermelho resultado de uma enxertia de laranjeira em romãzeira ou vice-versa. Isto pensava eu. Ele era vizinho de uma tia minha e, por vezes, oferecia aquelas laranjas tracejadas de sangue. Afinal, descobri muitas décadas depois, isso é um mito. Não há enxertia possível entre laranjeira e romãzeira. É assim que se destrói a infância. Seja como for, também o dono daquelas laranjeiras sanguíneas tinha um dente de ouro, mas não tinha a voz poderosa do outro, nem fazia pão. Parecia cansado, ele e a mulher. O padeiro distribuía o pão num carro. Parava, buzinava e as freguesas aproximavam-se. Então ele falava alto e mostrava o dente de ouro. Depois, metia-se no carro e ia buzinar para outro lado. Havia também um sardinheiro. Vendia peixe, mas não tinha carro nem dente de ouro. Tinha uma carroça. Dentro dela havia caixas de madeira cheias de gelo e peixe. Julgo que tinha uma corneta com a qual se fazia anunciar. A carroça era puxada por um burro ou por uma mula, e o sardinheiro parecia-me muito velho, com a barba sempre por fazer. Talvez tivesse medo dele. O resto era fornecido pelas mercearias. Umas tinham padaria; outras, taberna. Tanto quanto sei, quem tinha dente de ouro não ia à taberna, talvez com medo de o perder por lá nalguma batalha de cartas ou de dominó. Não, nas tabernas não se jogava dominó, esse era jogado no café, pois também havia um café. Eram gloriosos esses tempos em que havia homens com dentes de ouro e as laranjeiras eram enxertadas nas romãzeiras.
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