sexta-feira, 22 de julho de 2022

Mundos ficcionais

Thomas Bernhard é, dos autores do século XX, um dos que mais gosto. Na sua escrita não há qualquer facilidade nem concessão ao bom gosto e ao agradável. Talvez a sua história pessoal ou a doença pulmonar de que sofria – e de que viria a morrer – o tenha predisposto para um feroz pessimismo e para o cultivo do escárnio. Isto para além de um contumaz ressentimento perante o seu país, a Áustria. Em Betão (1982), escreve o seguinte: As pessoas têm um cão e são dominadas por ele, o próprio Schopenhauer não se deixou guiar pela sua cabeça, deixou-se guiar pelo seu cão. Este facto é mais deprimente do que qualquer outro. No fundo, não foi a cabeça de Schopenhauer que determinou o seu pensamento, mas o cão de Schopenhauer, não foi a cabeça de Schopenhauer que odiou o mundo, mas o cão de Schopenhauer. Não é preciso ser-se louco para afirmar que Schopenhauer teve um cão no lugar da cabeça, mas não teve cabeça. A leitura de Bernhard não é para pessoas que cultivam o optimismo ou que pretendem salvar a sua existência cultivando a ilusão das coisas boas deste mundo. Também não é própria para quem tem sonhos progressistas e está sempre em luta por um mundo melhor. Curiosamente, a diatribe contra Schopenhauer contém ainda um princípio de esperança, o qual se revela em muitas outras passagens de múltiplas obras do escritor austríaco. Há na sua denúncia da hipocrisia humana um desejo – pelo menos, um desejo – de encontrar um território onde as pessoas possam encarar-se a si mesmas, suportar o que são e, presume-se, estabelecer relações mais saudáveis com os outros. O texto citado pertence a uma colecção de obras ficcionais das Edições 70, denominada Caligrafias. Era dirigida por Eduardo Prado Coelho e, como seria de esperar, constituída por grandes obras literárias. Foi nessa colecção que li a trilogia Os Sonâmbulos, do também austríaco Hermann Broch. Começo a ficar preocupado com esta prática da reminiscência. Prova, como pensa Paul Raison, personagem de Aniquilação, o último romance de Michel Houellebecq, de uma vida falhada. Hoje estou preso neste mundo de papel que é o romance. Vou de Thomas Bernhard a Michel Houellebeq, passando por António di Benedetto, de que comprei há pouco Os Suicidas. A verdade, porém, é que também eu sou um narrador e, não passando de um ser de papel – neste caso, nem isso, sou um ser virtual num monitor – só os mundos ficcionais são o meu mundo. Digo mundo e não realidade, pois esta, como se sabe, é insuportável e, para mim, inacessível. 

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