Um homem faz anos e recebe, da sua mulher, como presente de aniversário – do seu quadragésimo sexto aniversário – um livro. Caso esse homem fosse vivo, faria este ano, lá para Dezembro, 106 anos. Sei tudo isso através da dedicatória inserta numa das primeiras páginas de um romance comprado num alfarrabista. Sei também o nome da mulher, mas não a idade que ela teria, caso fosse viva. Também não sei o nome dele. Esta oferta ocorre no ano de 1960 e o que está escrito manifesta o cumprimento de um dever, mas não a presença do travesso deus Eros. Ela usa a expressão Felicito-te pelas tuas 46 primaveras. É quase um comunicado oficial, um exercício proveniente da burocracia matrimonial. Curiosamente, a mulher tem um apelido toponímico (não sei se será dela ou dele) que me chama a atenção. Alguém daquela família nasceu numa vila, de que tomou o nome para apelido, onde terá nascido, também, uma das minhas bisavós. Tento imaginar que casamento será esse, mas pertence a uma geração que me é completamente desconhecida. Imagino que sejam católicos – pois o autor do livro, um romance, é um padre – e que teriam alguns hábitos de leitura, mas não seriam particularmente ricos. Um livro como oferta. O livro está aberto, as folhas foram cortadas até ao fim, indício que foi lido. O autor é irrelevante no panorama da literatura nacional, a sua escolha parece motivada por uma visão ideológica e não por um ilustrado interesse literário. É possível que não tenham sido felizes nem infelizes, mas terão levado o contrato até ao fim. E isso era fundamental naqueles tempos. É provável que tenham tido filhos e netos. Terão sido estes a desfazerem-se dos livros dos avós. Se o não tivessem feito, o livro não me teria chegado hoje às mãos e eu não teria assunto para escrever.
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