quinta-feira, 21 de julho de 2022

Comunicações e fatalidades

Hoje o dia não começou mal. O diálogo com a balança foi civilizado e ela retirou-me mil e quatrocentos gramas relativamente à última conversa. Espero que continue benevolente. De seguida, apesar da zona parecer ter-se transformado num estaleiro, com um barulho de máquinas que não acaba, consegui ter o discernimento suficiente para tomar uma decisão, a qual me deu um sentimento de ter escolhido o melhor dos caminhos possíveis. O quotidiano continuou animado. Uma chamada da operadora de comunicações, onde um rapaz debitava, numa retórica amorfa, uma ladainha que pretendia uma qualquer fidelização em troca de não se sabe bem de quê, talvez de vender a alma ao diabo. Ainda pensei dizer-lhe que não tinha inclinação para Fausto, mas seria introduzir mais ruído na comunicação. A conversa lá chegou ao fim e com um acordo. Tudo continuaria como está, inclusive a minha não fidelização ao demónio que opera as comunicações naquele lugar específico do inferno. A vida é assim, há dias que temos de enfrentar os pobres Mefistófeles que tentam desencaminhar as almas para poderem pagar as contas ao fim do mês, coisa que merece o máximo de respeito, sublinhe-se. De súbito, livre da operadora, dou com uma citação de Cioran, retirada dos Silogismos da Amargura: Uma poesia digna desse nome começa pela experiência da fatalidade. Apenas os maus poetas são livres. Há na frase qualquer de presunçoso relativamente aos poetas. Estes sê-lo-iam por uma escolha que não a deles, seriam uma espécie de eleitos, de cuja eleição não poderiam fugir. Ser poeta não dependeria do livre-arbítrio. A presunção não estará na eleição, mas no facto de se restringir à poesia. Refaçamos o dito de Cioran: Uma olaria digna desse nome começa pela experiência da fatalidade. Apenas os maus oleiros são livres. Radicalizemos mais um pouco: Uma recolha do lixo digna desse nome começa pela experiência da fatalidade. Apenas os maus homens do lixo são livres. Ainda outra tentativa: Uma vadiagem digna desse nome começa pela experiência da fatalidade. Apenas os maus vadios são livres. Não há quem não possa reivindicar um destino, uma fatalidade para se apresentar perante os outros. Há uma coisa, porém, que Cioran não explica. Se a fatalidade não é uma ilusão, como poderão ser livres os maus poetas? E se ela é uma ilusão, então os poetas dignos desse nome serão homens livres, mesmo que o não saibam. 

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