Como ontem tive de ir a
Lisboa, cumprir com grande prazer a obrigação de avô, hoje saí para ir às compras. Dei
uma volta pela cidade. Pareceu-me mais sombria do que habitualmente, as pessoas
estavam de semblante carregado, como se temessem a aproximação do Inverno.
Registei alguns quadros humanos que me fizeram lembrar um certo filme italiano,
cujo título, por pudor, omito. Tenho estado a ouvir um CD com o título Gesualdo.
Uma obra da etiqueta ECM. Apresenta duas peças de Carlo Gesualdo, príncipe de
Venosa, uma do compositor australiano Brett Dean e outras duas do estoniano
Erkki-Sven Tüür. Gesualdo foi uma personagem tortuosa, não apenas por ter
assassinado a primeira mulher e o amante desta, mas também pelos estados
depressivos de que sofreu na parte final da vida, na qual se entregou ao
sentimento de culpa e a exercícios de punição, tendo contratado mesmo alguém
para o açoitar com regularidade. Viveu, contudo, para a música e a sua obra é
uma das mais significativas e inovadoras do Renascimento. Werner Herzog fez um
filme-documentário sobre o compositor com o título Gesualdo – Death for Five
Voices. Talvez a lenda negra que o rodeava tenha contribuído para o seu
esquecimento até que o século XX o redescobriu. Desde o início dos anos noventa
do século passado até hoje, segundo informa a inevitável Wikipedia,
foram escritas pelo menos sete óperas que têm por tema a vida de D. Carlo
Gesualdo. A primeira – o drama musical Maria di Venosa – é do compositor
italiano Francesco d’Avalos, um descendente de um tio de Maria d’Avalos, a primeira
mulher de D. Carlo. A justiça da altura, tendo os homicídios ocorrido numa
situação de flagrante delicto, considerou que o príncipe de Venosa não cometera
qualquer crime, apesar dos requintes de malvadez que envolveram o acto de
vingança. Numa leitura mais suspeitosa poder-se-á pensar que a família de
Venosa seria mais influente que a do duque de Andria, Fabrizio Carafa, o
amante, e a dos de Avalos. Nestas coisas e naqueles dias, o direito e a força
teriam cada um a sua lei. Lembro-me perfeitamente do disco em que descobri
Gesualdo. Foi em Tenebrae (1991), em que a música do compositor é
interpretada pelo The Hilliard Ensemble. Julgo que queria escrever sobre outra
coisa. Perdi-me e agora já não me lembro sobre o quê. Imagino que o cinzento
deste domingo me tenha levado ao encontro de D. Carlo. Também dos dias devemos
desconfiar.
Se somos todos - os velhos -, di Venosa, os nossos netos devem ser, como o sangue oxigenado- di Arterial. E isto porque, como nenhuma outra melodia, nos conseguem injectar sangue novo. Hoje estive a ouvir uma história em inglês, lida pela minha neta de seis anos. A avó estava ‘in a cage’ e depois foi salva. E não foram as sonatas para piano e violino de Mozart (primorosamente tocadas), que me salvaram. O que me salvou hoje foi a voz da minha neta, a hesitar algumas vezes naquela partitura.
ResponderEliminarDe Werner Herzog, gostei muito de ver um livro cujo título é Caminhar no Gelo. Não deve haver história mais bonita sobre a amizade.
ResponderEliminarNão conheço o livro. Aliás, nunca li nada de Herzog. Talvez um dia o descubra.
EliminarTalvez nem valha a pena. Está entre O Império, de Kapuscinski, e as Ilhas Desconhecidas, de Raul Brandão.
ResponderEliminarPode parecer pretensioso, mas temos de usar as nossas máscaras. É claro que Gesualdo me era absolutamente desconhecido, mas, ficando a saber a sua história, me apeteceu antes ouvir a Winterreise por Jonas Kaufmann, até morrer descongelada. Nessa viagem de Inverno (rigoroso), ouvi a sua música, vi o que Herzog filmou, sei que morreu em ferida por vontade própria. Mas sobre isso só posso proferir uma idiotice, e essa idiotice é que o remorso já não salva ninguém. Nem o próprio.
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