O domingo galopa para o seu fim. Entrou já no túnel negro da noite. Quando, pela aurora, voltar a luz, será a claridade de um outro dia. A casa está agora silenciosa, depois de as netas se terem ido embora. Ecoam ainda as risadas, mas são já pura memória. Ontem, elas tiveram infinita paciência para ele, para brincarem com o novo robot chegado há dias com os quatro anos. Conjugar adolescência e infância nem sempre é uma tarefa fácil. Avanço, com alguma preguiçosa lentidão, na leitura da obra do Marquês de Custine sobre a Rússia. Pus de lado a edição portuguesa, pois está amputada de um quarto das cartas, e leio em francês, a edição de 1843, graças à actividade benévola de quem põe em formato digital as obras caídas no domínio público. Na quinta carta sublinho Um juízo são é a recompensa das paixões reprimidas. Eis uma observação que os nossos dias não poderiam aceitar. A repressão das paixões teria um impacto patológico. Devemos ser compreensivos e aceitar a natureza humana tal como ela é, incluindo o seu carácter passional. A contrapartida, caso se aceite a máxima de Custine, será a ausência de sanidade dos nossos juízos. Talvez a nossa época imagine, caso as épocas imaginem seja o que for, que seja possível compatibilizar a clareza do juízo com uma gestão das paixões. Em vez da sua repressão, teríamos um exercício burocrático de administração passional. Custine pertence ainda a uma cultura que, do ponto de vista teórico, mas não prático, vê em qualquer paixão um princípio de desordem. Reprimi-las é trazer a ordem ao caos que habita no fundo tenebroso de cada ser humano. E será essa ordem, resultado do cultivo de certas virtudes, que permitirá a sanidade dos julgamentos, um discernimento claro e distinto. Oiço o Piano Trio n.º 2, de Franz Schubert, e sei que todos estes pensamentos se desvanecerão.
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