quinta-feira, 17 de novembro de 2022

Bom senso

Há conversões curiosas. Por exemplo, a do marquês de Custine. O avô e o pai foram guilhotinados na época do Terror. A mãe esteve presa até à queda de Robespierre. Em 1839, faz uma viagem à Rússia. Vai, segundo diz, em busca de argumentos contra o governo representativo. Volta de lá adepto das constituições, isto é, adversário do absolutismo. Talvez fosse um espírito aberto à aprendizagem e por isso converteu-se. Na tradição cultural que nos forma, a mais célebre conversão é a de Saulo de Tarso, conhecido como S. Paulo. Todas as conversões trazem consigo um perigo, o da substituição de um fanatismo por outro. Não parece ter sido o caso de Custine. Tudo isto vem a propósito de uma viagem pela informação sobre o estado do mundo. Neste, existem convicções a mais e pouca gente com capacidade de se converter ao bom senso. Talvez porque este, segundo afirmava, não sem ironia, Descartes, é a coisa mais bem distribuída no mundo, pois não há quem queira ter mais do que aquele que possui. Sempre podemos questionar se a nossa época é mais insensata do que as anteriores. Não sei se a insensatez se mantém constante ou se vai variando, talvez de forma cíclica. O que sei é que nunca como hoje os meios para a difundir foram tão grandes e tão poderosos. Pena esses meios não terem qualquer poder para difundir o bom senso. Se as pessoas tivessem a predisposição para aprender, como a teve Astolphe Louis Léonor, marquis de Custine, as coisas por certo seriam menos desagradáveis. Porém, as pessoas assim como não querem ter mais bom senso do que aquele que possuem também não querem aprender mais do que aquilo que sabem. O que vale é que a noite já caiu e há-de trazer consigo o sono, onde tudo isto será apagado. Talvez a realidade também precisasse de um apagão.

7 comentários:

  1. Quando estou assim, ponho-me a ouvir Roger Scruton sobre a beleza e o consolo de a preservar. Também pode ser Mahler. No meio de uma marcha fúnebre, pode aparecer uma polka de esperança.

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  2. O que tenho estado a ouvir não é Mahler, mas a Liturgy of St. John Chrysostom for Mixed Choir a capella, de Tchaikovsky, que começa com um Lord, have mercy, embora o mais comum seja recorrer a Palestrina.

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    1. Meu Deus, sinto-me uma espécie de migrante, sem nome nem apelido, prestes a soçobrar. Porém, antes lhe deixo o terceiro andamento da Sinfonia No1 de Mahler, onde Frère Jacques, moribundo, renasce em polka, embora, a certa altura, pareça valsar.
      Vou investigar o seu aristocrata.

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    2. Existe uma edição das Cartas da Rússia, do Marquês de Custine, na Imprensa da Universidade de Lisboa. No archive.org, encontram-se diversas obras, entre elas as referentes à estadia na Rússia (La Russie em 1839), em 4 volumes. Em pdf. É necessário alguma paciência, mas descobrem-se os 4 volumes.

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    3. Agradeço muito as sugestões. Entretanto descobri que as Cartas da Rússia estão publicadas pela Almedina (2019), e que o livro foi censurado pelo menos duas vezes: logo no início, e durante o governo de Estaline. Não me admirava se também nos dias de hoje. Mas, a descoberta das descobertas, foi que um belíssimo filme (e que faz parte da colecção de DVDs cá de casa) - A Arca Russa - de Aleksandr Sokurov, foi baseado nele. Já ganhei este dia.

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    4. Julgo que a edição que refere é a da Imprensa da Universidade de Lisboa e não da Almedina. É aquele que tenho, comprada na Almedina. Há poucas livrarias a vender online - e em loja - os livros da Imprensa da Universidade de Lisboa (um catálogo relativamente curto, mas excelente). Uma delas é a Almedina.

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    5. Sim, tem razão, comercializada pela Almedina. Ah, o entusiasmo.

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