segunda-feira, 28 de novembro de 2022

Herança

A luz cai sobre a cidade, lembrando aos mais distraídos que a tarde ainda não acabou. Na avenida, passa gente sem pressa, pessoas atreladas a pequenos cães, carros sem destino visível. A luz desmaiada do sol resplandece nas paredes do hospital e da escola aqui ao lado. Um cão solitário fareja os troncos das árvores, os pneus dos carros, os postes da iluminação eléctrica. Hoje, na busca de uns velhos papéis, encontrei um volumoso envelope castanho com três cadernos manuscritos. Não me pertencem, eram de Eduína. Recordei, ao vê-los, que ela me pedira para os guardar, até que os tornasse a requisitar. Assim fiz, mas ela nunca os pediu de volta e agora é tarde para o fazer. Esquecera-me deles e não faço ideia do seu conteúdo. Imagino que, nesta hora, já não serei o fiel depositário, mas o herdeiro. Um herdeiro acidental, fruto de não haver herdeiros directos nem indirectos. Quando peguei naquele embrulho fiquei perplexo e ainda não sei o que fazer com ele. Não me lembro qual foi a razão para que ela me pedisse para guardar os manuscritos, nem se terá dito alguma coisa sobre o seu conteúdo. Ela nunca deixara de ser esquiva, pelo menos quando isso a interessava. Um dia destes terei de tomar uma decisão sobre o que fazer com aquela herança ocasional. Agora, tenho de me preparar para uma videoconferência. Pelo menos, fico com a certeza de que estou integrado no admirável mundo novo. Não sou um digital nato, mas ainda consigo que me tomem por alguém adaptado às novas tecnologias. Se tivesse paciência, haveria de ver um jogo de futebol, mas este perdeu o encanto que um dia, há dezenas de anos, teve. E não me parece possível que possa ser reencantado. Também os mitos morrem.

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