No capítulo 28, se é que se podem chamar capítulos aos pontos em que a obra se divide, de O passo da floresta, Ernst Jünger escreve: É angustiante o modo como os conceitos e as coisas mudam o seu aspecto muitas vezes de um dia para o outro, produzindo consequências diferentes das esperadas. O referente do excerto é completamente indeterminado. Que conceitos e que coisas? A frase seguinte dá uma pista: Esse é um sinal da anarquia. A pista pode ser, para muitos leitores, decepcionante. Afinal, está-se no campo da política, onde estamos solidamente habituados a que as coisas e os conceitos mudem de um dia para o outro e que as consequências sejam as mais inesperadas. Aliás, o campo da política é o território da mobilidade. A frase de Jünger, fora do seu contexto, é bastante promissora. Imaginemos que as coisas, as mais triviais, mudam de um momento para o outro. Por exemplo, o copo que tenho à minha frente e que vou deixar na secretária. Amanhã, ao sentar-me a essa mesma secretária, o copo é uma careira onde se transporta a colecção de cartões com que um homem moderno deve andar acompanhado. Seria uma coisa muito mais exaltante do que as mudanças nas instituições políticas. Não menos entusiasmante seria a anarquia conceptual. Por exemplo, o conceito de círculo – não, não me estou a referir à palavra círculo, mas à representação geral e abstracta – deixar de representar uma porção de plano limitado por uma circunferência e passar a representar, num dia, a medida do afastamento de duas semi-rectas que têm a origem num mesmo ponto – o vulgar, ângulo – e, num outro, representar um ser vivo microscópico, procariota, desprovido de sistemas de membranas internas, a que agora damos o nome de bactéria. Ora, se Jünger, um autor de que gosto, se sente angustiado pela alteração das coisas e dos conceitos ligados ao mundo da pólis, o que se sentiria ele se essas mudanças se dessem nos outros domínios da realidade, por norma mais conservadores e com uma forte inclinação para a estabilidade. Viveria um tormento, imagino. Tormentosa também é a leitura do livro. A tradução portuguesa tem 101 páginas, mas as letras são tão pequenas que cada passo dado na floresta é extremamente cansativo.
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