O último dia de férias. Amanhã, retorno à realidade, com a sua procissão de coisas inúteis. Para dizer a verdade, só retorno porque decidi fazê-lo. Um acto do meu livre-arbítrio. Sempre se poderá argumentar que esse acto livre não passa de uma ilusão. Eu estou determinado a realizá-lo por um conjunto de causas que desconheço, e é essa ignorância que me oferece a doce ilusão de que aquilo que faço depende da minha escolha. Isso foi pensado por um judeu de origem portuguesa, Baruch Espinosa. Por interessante que o pensamento de Espinosa seja, eu não partilho da sua falta de fé no livre-arbítrio. A minha fé – qualquer posição sobre o livre-arbítrio, por excelentes que sejam os argumentos que se possua, será, em última análise, uma questão de fé e não de prova racional – a minha fé, dizia, é de que possuo livre-arbítrio e que, por vezes, escolho aquilo que faço, podendo fazer uma coisa diferente. Por exemplo, poderia ter decidido, em vez de escrever isto, ir a uma esplanada, beber uma cerveja e contemplar o sol a afogar-se no mar. Nada me impedia e tenho várias esplanadas, com vista sobre o pôr-do-sol, mesmo à mão de semear, embora na areia e no mar nada se semeie e eu não tenha alma de agricultor. Ao fim de várias décadas de convívio com a minha alma, ainda não compreendi que tipo de alma é que me coube em sorte. Talvez seja uma alma sem tipo, como, no romance de Musil, o homem é sem qualidades. Hoje, ao telemóvel, tive uma longa conversa com o padre Lodo, mas não discutimos o problema do livre-arbítrio, uma das coisas em que eu e o velho jesuíta meu amigo estamos de acordo. Explicou-me, longamente, por que razão, este ano, não esteve por aqui, onde a Companhia tem um belo local de férias. Ao ouvi-lo pensei que estava a repetir-se, mas, de imediato, reconheci que também me repito e sou mais novo. Com o avançar da idade temos uma tendência para a repetição. No meu caso, parece haver uma predilecção pela anáfora. Imagino que o uso da repetição seja uma luta contra o desmemoriamento. A realidade aproxima-se, mas um dia hei-de esquecê-la. Não haverá anáfora que resista.
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