Hoje tem chovido. Quase sempre bátegas de água violentas, que logo param, como se as nuvens se cansassem desse esforço de enviar sobre a cidade uma água benevolente que se não lavar os corpos, talvez ajude a branquear as almas. Antigamente, as pessoas preocupavam-se em branquear a alma, que se enegrecia em contacto com a fuligem da vida e o carvão do desejo. Hoje, a preocupação maior é a do branqueamento de capitais. Quem os tem procura branqueá-los e a justiça, que os acha negros como o breu, tenta, talvez com pouco sucesso, localizá-los para tratamento e reciclagem. Estou a desviar-me do assunto. Das bátegas de águas, do céu cinzento, das pessoas a recolherem-se sob varandas, pois ninguém acha decoroso num dia de Setembro andar de guarda-chuva na mão para o que der e vier. Agora, enquanto escrevo esta emissão do boletim meteorológico local, os raios solares encontraram uma abertura entre o chumbo das nuvens e derramam uma luz pálida sobre as paredes cobertas de fungos do Hospital. A semana, refiro-me à útil, acabou, sem que a utilidade tenha deixado um rasto de memória. Houve demasiado calor e a memória dá-se mal com temperaturas elevadas. Um alarme de um carro começou a implorar socorro, mas ninguém parece disposto a estender-lhe a mão. Ah já se cansou, como eu também já estou cansado. Maldição, o alarme recobrou as forças rapidamente. Vou fechar as janelas, recostar-me, fechar os olhos e deixar que a peça Für Alina, de Arvo Pärt, me ajude na meditação.
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