O filósofo francês Luc Ferry destaca, como um dos acontecimentos capitais
dos tempos modernos, aquele que marca uma clara diferenciação com outros
tempos, a transição do casamento combinado para o casamento por amor. Esta ideia
está conectada com uma outra sublinhada, agora por Gilles Lipovetsky, a da
sagração da autenticidade. O casamento passou a ser uma expressão autêntica dos
sentimentos das partes e não um mero arranjo contratual, para, citando o Kant
da Doutrina do Direito, ordenar aquilo que o filósofo nascido em Konigsberg descreve
com o requinte que se segue: Com efeito o uso natural que um sexo faz dos
órgãos sexuais do outro é um gozo, pelo qual cada parte se entrega à
outra. Isto foi escrito no § 25 Do Direito Doméstico. Não menos interessante
é o começo do § 24: A comunidade sexual (commercium sexuale) é o uso recíproco
que um homem pode fazer dos órgãos e faculdades sexuais de uma outra pessoa
(usus membrorum et facultatum sexualium alterius). Estamos perante
transacções comerciais, nas quais o casamento confere um direito – mas um
direito recíproco – aos usos dos órgãos sexuais da outra parte. Não admira que
Kant nunca tenha casado, se era assim que ele via a sexualidade e o casamento.
Parece óbvio que o amor não fazia parte deste universo. O Eros submetia-se
a uma regulação jurídica. O casamento por amor, no âmbito da expressão de uma
natureza autêntica, vai libertar o Eros. A desregulação deste tem uma
consequência agora conhecida por todos, o divórcio. O Eros esfria
rapidamente, o amor dissolve-se no quotidiano, o casamento acaba e lá se vai,
acompanhado por um alívio, o direito de usar os órgãos e faculdades sexuais da
outra parte, os quais, na verdade, se tornaram soporíferos.
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