quinta-feira, 24 de abril de 2025

A mesa do lado

Hoje já fiz uma viagem de doze graus centígrados. Há quem meça a distância pelos quilómetros, há quem o faça pelos ponteiros do relógio. Eu sirvo-me do termómetro. Fui almoçar a certa praia do Oeste. Quando saí de lá, estavam dezoito graus, bem depois das duas da tarde. Ainda me demorei por aqui e por ali. Quando cheguei a esta cidade – cuja honra maior seria a promoção a vila, o que nos dias de hoje é impossível – estavam trinta. Como sempre, o peixe daquele restaurante é excelente. O problema é que não podemos escolher quem se senta na mesa ao lado. Calhou em sorte um casal – enfim, talvez não fosse um casal, mas um homem e uma mulher – em que ele mal abria a boca, seja para comer, seja para beber, seja para falar. Ela, porém, compensava a frugalidade dele e restabelecia o equilíbrio no mundo. A certa altura, o discurso dela voltou-se para a teologia. Que tinha lido qualquer coisa que não percebi, embora tivesse ficado desejoso de saber o quê. Asseverou que Jesus Cristo tinha sido casado com Maria Madalena, e deu uma explicação teológica: ele era Deus e homem, e, como homem, decidiu casar-se, mas não adiantou se tinha tido filhos e se fora feliz no casamento. Como Deus, fez todas aquelas coisas de multiplicar os pães, curar os doentes, ressuscitar os mortos e transformar a água em vinho. Tudo isso era verdade, está mais que provado cientificamente. Só não há filmes nem fotos, pensei, porque ainda não tinham descoberto o cinema, nem a máquina fotográfica. Quando ela pediu a segunda garrafa de vinho, deu a desculpa de que estava com muita sede, mas percebi que acreditava que ainda era um resto do vinho das Bodas de Canaã, e que era melhor aproveitar, não vá esgotar-se. O que me pareceu bastante plausível. Tinha uma cor rosada e não o vermelho tinto que teria resultado da metamorfose da água. Dois milénios sempre são dois milénios, e as antocianinas perderam o vigor, ficaram anémicas. A senhora, porém, não se preocupou com a anemia e, para compensar, pediu uma aguardente velha, com aquela cor castanha que faz lembrar sangue seco. Não devia escrever estas coisas. Sabe-se lá se são verdade. O pior foi a chegada, depois de doze graus de viagem.

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