quarta-feira, 23 de abril de 2025

Ramalhetes de papoilas

Hoje – finalmente – fui caminhar pelas ruas da cidade. Passei pelo parque, mas não era um parque de merendas. Não havia piqueniques de burguesas, nem ramalhetes rubros de papoilas, nem seios como duas rolas. As burguesas de hoje não andam de burro, deslocam-se a grande velocidade, não sabem o que são piqueniques nem papoilas – e, quanto aos seios como duas rolas, estamos conversados. Cesário Verde não escreveu papoilas, mas papoulas. Em contrapartida, no tempo dele, seria provável que o ouro fosse oiro. As pessoas iam aos toiros; hoje vão aos touros. Ninguém encontra tesoiros, mas também não descobre tesouros. Tesouro ou tesoiro, a coisa não se entrega a ninguém – ou quase. Foi isto que ocupou o vazio da minha mente enquanto caminhava? Não, claro que não. Isto ocorreu-me agora, pois aquilo que pensei evaporou-se. Esta ideia de um pensamento que se evapora contém uma importante lição sobre a mecânica do mundo – do mundo mental. Talvez o único mundo que exista seja o mundo mental, mas não vou discutir metafísica ou epistemologia a uma hora destas. A lição pertence à física – talvez à mecânica dos fluidos. A evaporação do pensamento é um fenómeno interessante porque o processo não é igual ao longo da vida. A princípio, o pensamento não se evapora porque não se pensa nada. Depois, o pensamento torna-se sólido e fica dentro de nós: são os primeiros princípios. Mais tarde, o pensamento sofre uma metamorfose e devém líquido – aquilo a que se poderia chamar a água do pensamento. Eu vivo, porém, noutra fase: a do pensamento gasoso. Mal penso, ele transforma-se em gás e evola-se, evapora-se – o que quiserem. Quando Joyce escreveu o Ulisses e o Finnegans Wake, o seu pensamento era líquido. Por isso, recorria à corrente do pensamento – ou da consciência. Era a água do pensamento a fluir dentro da cabeça dele. Eu passei directamente da fase sólida para a gasosa. Faltou-me a líquida. Se a tivesse, talvez ao caminhar descobrisse um piquenique de burguesas, que, sem posturas tolas, colhiam ramalhetes rubros de papoulas. A vida é perda contínua.

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