sexta-feira, 25 de abril de 2025

Uma arte

Um dos meus talentos – talvez o único – é o da arte de protelar. Protelei tanto que fui coagido pela realidade a dedicar o feriado a coisas que tinha de fazer, mas cuja execução me causa náuseas. E, esclareça-se, não sou dado a náuseas, embora a náusea sartriana tenha exercido fascínio sobre a minha configuração mental mais do que devia, reconheço. Não sofro de procrastinação. O meu adiar coisas repelentes não é uma doença, mas uma arte, a arte de protelar, como escrevi acima. Procrastinar é uma doença porque o sujeito que procrastina é passivo. Sofre a procrastinação, como se sofresse de reumático, de gripe ou de uma qualquer doença do catálogo sem fim que os médicos guardam no cofre-forte dos seus consultórios. Protelar, porém, resulta de uma decisão, a qual dá às coisas proteladas espaço para amadurecerem, para se tornarem mais sólidas e, por isso, mais imperativas. Quando chegam a essa fase, apresentam-se diante de mim – daquele que as permitiu desenvolver na irresolução – e, peremptórias, pedem para serem resolvidas. Eu cedo ao pedido. Por isso, quase não dei pelo feriado cívico, ocupado com aquilo que tinha adiado. Este episódio é virtuoso. Mostra que a ordem do mundo está errada, coisa que Hamlet já sabia ou o próprio Quixote. Errada porquê? Pelo facto de tudo aquilo que eu protelo não desaparecer no seu protelamento. Isso, sim, seria um mundo perfeito, ou quase. Também este texto foi, na sua escrita, protelado. Não foi por isso que se tornou melhor, apenas esteve mais tempo naquele limbo onde vivem os textos que estão à espera de ser escritos. Pois, se alguém pensa que os textos só existem porque alguém os escreve, posso afirmar que está errado. Qualquer texto, desde o mais incipiente até ao mais genial, existe a priori num estado potencial no mundo de textos à espera de se manifestar. Aquele que os escreve é apenas uma espécie de parteira que traz à luz do mundo a cria que existia já. Eu não escrevo estes textos. Faço o parto e eles nascem. Sou completamente irresponsável pela sua bondade ou maldade. Juro que é assim.

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