Começar
com uma citação: “Não faças com que esse mês te procure.” É um verso de
Herberto Helder, de um poema com o título Os mortos perigosos, fim.
Estou a ficar repetitivo. Num post anterior, já o tinha citado. A repetição não
é apenas um sinal de que se atingiu a idade em que certos temas tendem a voltar
uma e outra vez, o estádio de vida em que se conta infinitamente a mesma
história. O que se repete é o que, de algum modo, exerce sobre nós um
encantamento. E devemos ler nesta palavra muitas coisas: feitiço, sedução,
tentação, enlevo, êxtase. Somos trabalhados por dentro por certos símbolos, que
murmuram, rumorejam e troam na oralidade ou na escrita. Como não quero matar o
fascínio do verso, recuso-me, por hoje, a interpretá-lo, para deixar o espírito
vogar nas suas palavras. Os tempos modernos são acusados de terem assassinado o
encantamento. Talvez — penso-o agora — o diagnóstico de Max Weber tenha sido
apressado. A perda das grandes estruturas míticas que forneciam uma imagem
encantada do mundo, imagem partilhada pela comunidade, abriu as portas para os
encantamentos singulares. Não são as narrativas mítico-religiosas que nos
encantam, mas os nossos mitos particulares. Cada um de nós traz em si uma
mitologia e é, ao mesmo tempo, um fundador de religião. De uma religião sem
eclésia e com um único crente. Essa religião pode ter vários deuses, incluindo
o Deus único do monoteísmo, ou pode ter um deus hoje, outro amanhã. O
encantamento não morreu, singularizou-se, desligou-se do feitiço comunitário,
da crença em multidão, para se tornar pessoal e intransmissível. Essa, porém, é
a natureza de todas as nossas experiências: são singulares e incomunicáveis. O
que comunicamos não é a experiência, mas o que dizemos acerca dela. O que me
encanta no verso de Herberto Helder não se deixa captar pelas palavras, o que
mostra uma coisa paradoxal: a linguagem é impotente para se dizer a si mesma.
Sem comentários:
Enviar um comentário