terça-feira, 29 de abril de 2025

Impotência

Começar com uma citação: “Não faças com que esse mês te procure.” É um verso de Herberto Helder, de um poema com o título Os mortos perigosos, fim. Estou a ficar repetitivo. Num post anterior, já o tinha citado. A repetição não é apenas um sinal de que se atingiu a idade em que certos temas tendem a voltar uma e outra vez, o estádio de vida em que se conta infinitamente a mesma história. O que se repete é o que, de algum modo, exerce sobre nós um encantamento. E devemos ler nesta palavra muitas coisas: feitiço, sedução, tentação, enlevo, êxtase. Somos trabalhados por dentro por certos símbolos, que murmuram, rumorejam e troam na oralidade ou na escrita. Como não quero matar o fascínio do verso, recuso-me, por hoje, a interpretá-lo, para deixar o espírito vogar nas suas palavras. Os tempos modernos são acusados de terem assassinado o encantamento. Talvez — penso-o agora — o diagnóstico de Max Weber tenha sido apressado. A perda das grandes estruturas míticas que forneciam uma imagem encantada do mundo, imagem partilhada pela comunidade, abriu as portas para os encantamentos singulares. Não são as narrativas mítico-religiosas que nos encantam, mas os nossos mitos particulares. Cada um de nós traz em si uma mitologia e é, ao mesmo tempo, um fundador de religião. De uma religião sem eclésia e com um único crente. Essa religião pode ter vários deuses, incluindo o Deus único do monoteísmo, ou pode ter um deus hoje, outro amanhã. O encantamento não morreu, singularizou-se, desligou-se do feitiço comunitário, da crença em multidão, para se tornar pessoal e intransmissível. Essa, porém, é a natureza de todas as nossas experiências: são singulares e incomunicáveis. O que comunicamos não é a experiência, mas o que dizemos acerca dela. O que me encanta no verso de Herberto Helder não se deixa captar pelas palavras, o que mostra uma coisa paradoxal: a linguagem é impotente para se dizer a si mesma.

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