Um acaso levou-me a uma foto de um antigo relógio de parede. Para os conhecedores — que não é, de todo, o meu caso —,uma peça valiosa, dada a sua raridade. Uma particularidade deixou-me perplexo. No lugar dos tradicionais algarismos, tem um coração onde deveria estar o 6 e, nos restantes, letras que compõem a expressão latina TEMPUS FUGIT, que pode ser traduzida por o tempo voa ou o tempo foge. A perplexidade reside no propósito da inscrição. Um aviso? Uma ironia? O que significará avisar um mortal, cujo tempo é limitado, de que o tempo — aquele que lhe resta — voa, que em breve já não será? Sempre que consultar o relógio, ficará confrontado com a sua finitude. Isso terá um efeito perturbador e será uma porta aberta para a paralisia. Mergulhamos na vida porque suspendemos a crença na nossa mortalidade. Se somos continuamente confrontados com ela, qualquer esforço torna-se insensato para uma mente lúcida. Imaginemos, porém, que o autor da peça pretendia ironizar. A pessoa vê as horas e é recordada de que esse gesto é inútil, pois as horas que acabou de ver já pertencem a um passado que se afasta ao ritmo veloz do voo de um pássaro. Consultar um relógio seria, na óptica desse relojoeiro irónico, um acto absurdo. Entre o terror do sujeito e o absurdo da sua acção, há, naquele mostrador, uma crítica feroz aos tempos modernos. A modernidade ocidental — esse acontecimento emergente no século XVII — tinha por símbolo do seu mecanicismo o relógio. O mundo era um gigantesco relógio criado pelo divino relojoeiro, uma máquina precisa e matematicamente ajustada. Foi um século glorioso para a ciência e para a relojoaria. Essa glória, porém, escondia a evidência de que o tempo voa, que a vida continuamente se desfaz no nada, e que toda a consulta da informação no mostrador é um gesto inútil, pois ela torna-se, de imediato, desfasada da realidade. Talvez Deus, ao expulsar Adão e Eva do Jardim do Éden, lhes tenha dado, como castigo — para além daqueles que são enumerados no relato bíblico —, um relógio, ou a arte da relojoaria, para que não esquecessem aquele tempo em que o tempo não existia para eles. A suprema ironia do relojoeiro, porém, é o coração — essa declaração de amor, exibida sem pudor por aquele que acaba de ser lembrado de que desaparecer é o seu destino, ou de que querer saber as horas é o mais absurdo dos gestos. Talvez o relojoeiro fosse um ateu convicto. Ou estivesse em guerra com a suprema divindade.
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