domingo, 27 de julho de 2025

Buracos negros

O hábito é uma segunda natureza. Atribui-se a origem da expressão a Aristóteles, mas que sabemos nós da origem das expressões que são usadas pelos grandes homens? O mais adequado seria dizer que é em Aristóteles que encontramos registada, pela primeira vez, a ideia. Podemos imaginar que era uma expressão corrente nos meios familiares. A primeira natureza seria marcada por uma necessidade inexorável; a segunda teria de ser conquistada pelo esforço, uma viagem que iria do porto do possível ao cais do necessário. Isso formaria um carácter. Por que razão me haveria de lembrar disto? Por causa destes textos. Quase me esquecia deles. Quando me deparei com o esquecimento possível, ocorreu-me que escrevê-los ainda não se tornou um hábito, apesar de haver uma possibilidade forte de o fazer em cada dia. O domingo deslizou por mim com leveza, e eu deixei-me embalar por ele e habitei-o como um sonâmbulo. Foi ao chegar da caminhada que descobri a falta. Isto leva-me a pensar que não existe qualquer segunda natureza. Todo o hábito é susceptível de excepção, logo não é uma necessidade inexorável. Caminho todos os dias, mas ainda não se formou em mim o hábito de caminhar. Cada vez que me ponho ao caminho tenho de me vencer, de derrotar a inclinação para ficar onde estou. O pior, porém, é que talvez não exista sequer uma primeira natureza. A necessidade que vemos nos processos a que chamamos naturais talvez seja um defeito da nossa visão. Se não existe uma primeira natureza, o que existirá então? Não faço ideia. “Natureza” é apenas uma palavra. O que ela refere, porém, é algo que me escapa. Quem diz “natureza”, diz qualquer outra palavra. Por detrás de cada uma existe uma obscuridade tão grande que não a vemos. Dito de outra maneira: por detrás de cada palavra existe um buraco negro.

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