Chove com intensidade. Adolescentes à espera de entrar no Instituto de Línguas abrigam-se sob uma varanda. Um deles, porém, decide pôr-se debaixo de água. Coloca-se no meio da praceta e abre os braços, como se estivesse crucificado. As raparigas não reagem à performance, e ele fica ali desolado, abandonado à sua cruz imaginária, a água a cair-lhe em cima, até que se farta. De imediato, a chuva decide suspender o aguaceiro. Penso muitas vezes que a espécie teria um notável upgrade caso conseguisse suprimir os anos de adolescência. Muitos dissabores se poupariam aos pais e os próprios adolescentes não perderiam nada com a supressão. Acordar do período de latência hormonal e de jogos infantis e encontrar-se em plena idade da razão, ainda com sonhos e ilusões, mas sem o pesadelo de um corpo à procura de si mesmo. Na espécie humana nada é fácil. Estão exuberantes as cevadilhas da escola ao lado e as que orlam a margem de um ribeiro que atravessa a zona. Ninguém, ao olhá-las, diz que o perigo que escondem. A beleza nunca deixa de ser uma coisa perigosa, mais perigosa que a adolescência.
quinta-feira, 17 de junho de 2021
quarta-feira, 16 de junho de 2021
Confissões e promoções
Também eu me confesso e faço exame de consciência. Não se pense, porém, que sou um confessado do padre Lodo. Amigos, amigos, confissões à parte. Nem sequer frequento os confessionários. Trata-se antes de uma prática das organizações modernas, sejam empresas privadas, sejam instituições públicas. Aí foi-se instituindo que todos, no exercício das suas funções, teriam de se entregar a um momento de confissão e de agudo exame de consciência. Para disfarçar o pendor religioso da manobra, deram-lhe o pomposo nome de auto-avaliação. Esta confissão, porém, é perversa. Presumo que aqueles que se ajoelham diante de um sacerdote seja para confessar, contritos, os seus pecados, as pequenas e grandes malfeitorias que andam por aí a fazer. O objectivo será obter o perdão, tranquilizar a consciência e ter esperança na recompensa na outra vida, caso haja uma. As confissões profanas são momentos não de humilhação perante o mal feito, mas de exaltação das virtudes e de esquecimento dos vícios. O que está em jogo é a subida na hierarquia, tornar-se chefe do chefe, do chefe. Enfim, chegar ao topo, o que não deixa de ser ainda uma evocação do céu. Sempre achei estes exercícios indecorosos, pois quem, em seu perfeito juízo, vai dizer mal dos seus desempenhos. Na confissão tradicional, o confessado escarafuncha no mal para se libertar dele. Na confissão moderna, há que esconder o mal do confessor, varrê-lo para debaixo do tapete e esperar que ele lá fique a germinar. Não é a absolvição que se pretende, é a promoção.
domingo, 13 de junho de 2021
O massacre dos teclados
Hoje devia registar aqui que o meu dia foi anódino e sem nada que merecesse nota. Não o faço porque também o são assim todos os outros dias e não deixo de incomodar o teclado com as irrelevâncias que me ocorrem. Os teclados são das peças dos computadoras as mais maltratadas. Ainda pior que os ratos. Estão constantemente a ser martelados, como se tivessem de sofrer uma contínua flagelação motivada sabe-se lá porquê. Hoje é dia de Santo António. Será que ainda se realizam os casamentos do santo? A Santa Casa da Misericórdia podia patrocinar o evento e realizava um jogo de sorte. Organizava umas apostas sobre quantos dias resistiria cada um dos felizes matrimónios. Quando se desse um divórcio, repartia o dinheiro das apostas por si própria, pelos vencedores e pelos venturosos divorciados. Ficava toda a gente a ganhar e as rupturas seriam menos dolorosas, caso ainda o sejam. Não devia estar por aqui a blasfemar contra a instituição casamento, embora ela já tenha tido melhores dias. Também eu já os tive, é verdade, como se pode vir pela densidade do meu escrito deste pobre domingo de Junho. Para que estive eu a massacrar o teclado?
sábado, 12 de junho de 2021
Uma conversa telefónica
Ainda tive esperança que os portugueses fossem um pouco mais prudentes e não se entregassem, como o estão a fazer, nas mãos da pandemia. Foi assim que o padre Lodovico Settembrini começou a conversa comigo, quando me ligou depois de dizer missa. Respondi-lhe que, como italiano, não poderia falar muito de nós. Ele riu-se, depois acrescentou que, ao fim de tantos anos, se sente pouco italiano e mais português. Depois, hesitou, e rematou, bem a diferença é pouca ou nenhuma. Estou já duplamente vacinado, mas tenho medo, continuou. Não porque tema a morte, mas porque ainda me dá muito prazer estar vivo. Talvez isto não seja digno de um sacerdote, mas antes de ter entrado para a Companhia, eu era um homem. Não deixei de o ser. Depois, disse-me que tinha visto as minhas netas. Estavam com o pai. Que grandes que estão. Anuí. Evitou recordar-me o desgosto de não ter baptizado nenhum dos meus netos, coisa que sempre lhe deu um grande desconsolo. Informou-me, então, que iria passar uns dias à casa de férias dos Jesuítas, no Baleal. Agendámos um encontro e um jantar numa certa Brasserie que ambos estimamos. O pior, acrescentou, é se eles têm de fechar às dez e meia. Talvez não, respondi, sem grande fé. Uma desolação, disse, mas também a desolação faz parte da vida. Por certo, continuou, toda a desolação só acontece porque um bem maior haverá de nascer dela. Eu pensei que ele continuava às voltas com os argumentos sobre a existência de Deus, mas evitei comentar.
sexta-feira, 11 de junho de 2021
Uma desolação
Não faço ideia quem é Carlo Levi, embora uma rápida consulta me possa esclarecer. Há tempos comprei, num alfarrabista, um livro dele por causa do título, Cristo parou em Eboli. Havia, claro, uma ressonância em mim, a recordação de existir um filme, dirigido por Francesco Rossi, com esse nome e que nunca vi. Presumo que o assunto do livro não exerça, na pessoa em que me tornei, grande atracção. São memórias de um deportado político, durante a confiscação de Itália pelo fascismo. Li há pouco as primeiras duas páginas e talvez o livro mereça o tempo da sua leitura. Hoje o dia esteve quente. O que não é, para mim, um bom prenúncio. Aqui o calor jorra de todo o lado. Do sol inclemente, das paredes das casas, das faldas da serra. Tudo conspira para que o ar quente não possa sair, como se estivesse encurralado. A partir de agora e até Outubro, as coisas só piorarão. As pessoas aproveitam para oferecer as carnes aos olhos descuidados dos transeuntes. Talvez por isso evito grandes deslocações dentro da cidade. Bem, não estou a falar verdade. Ontem fui jantar à praça principal do povoado. Quem conhece a animação de uma cidade espanhola, grande ou pequena, só pode ficar desolado. A desolação, porém, faz parte da vida, como me disse ainda há dias o padre Lodo, mas não é hoje que conto a conversa havida.
quinta-feira, 10 de junho de 2021
Feriado e vírus
Parece que hoje é feriado, um feriado com um nome extenso, como se resultasse da fusão de vários e, como aconteceu com as freguesias, mantivesse a denominação de todos eles. Contrasta em capacidade de síntese com o feriado religioso de Todos-os-Santos. O pior é que aquela história do vírus é um incêndio que se reacende sempre que parece estar quase extinto. Há muitos anos, havia um anúncio que proclamava que um certo carro, cujo nome omito, veio para ficar e ficou mesmo. Assim está o vírus. A continuar deste modo, com o tratamento simpático que os portugueses lhe oferecem, não tarda e está tudo confinado outra vez. O principal canal de contaminação, li em tempos, é as narinas. Ora, muitos portugueses gostam imenso de usar máscara, desde que as narinas possam ficar descobertas, não vá o inimigo não ter maneira de se intrometer nos pulmões. Nem sei o que me deu, para estar a escrever sobre este assunto mórbido em vez de celebrar Portugal, Camões e as Comunidades. Vou continuar a fazer aquilo que deixei a meio. Ainda não fui à rua, mas talvez não tenha oportunidade. Já agora, o vírus não reconhece feriados, fins-de-semana nem dias santos. É absolutamente democrático.
quarta-feira, 9 de junho de 2021
Da polimatia e outras sagas
A saga das impressoras talvez chegue em breve ao fim. Descobri uma loja que vende tinteiros e que parece perceber de impressoras. Não a loja, mas quem lá trabalha. Conversei com eles e disseram-me para levar lá as maquinetas. A laser é impossível, com o que tem trabalhado, que tenha problema grave, juraram. A de jacto de tinta, logo se verá. O caricato é que a loja está mesmo à mão de semear. Vejo-a da cadeira do meu escritório. Saio de casa e não são cem metros. Não me a tivessem indicado e eu não iria lá. Para continuar num registo ao gosto popular, direi que santos de casa não fazem milagres. Neste caso, são santos ao pé da porta. São estas banalidades que dão sentido à vida. Um bom banho no mar das trivialidades e desaparecem as melancolias, o spleen, o absurdo da existência, a náusea e até a angústia, seja para o jantar ou para qualquer outra refeição do dia. Descobri um senhor chamado William Whewell. Viveu no século XIX e era uma daquelas pessoas que, para minha inveja, parecia saber de tudo. Leio que foi cientista, padre anglicano, filósofo, teólogo e historiador da ciência. Um autêntico polímata. Bem, eu dispensava ser aquilo que ele foi, até padre anglicano. Seja como for, ele, enquanto padre, não devia ter uma paróquia que lhe exigisse tempo. O que me interessou foi a obra The Plurality of Worlds. Achei um título magnífico. Na verdade, a obra, que facilmente se encontra na internet, não me pareceu particularmente estimulante, mas o título é como a embalagem. Quantas vezes compramos uma coisa inútil apenas porque tem uma embalagem que nos agrada? O que tem a ver a saga das impressoras com um padre anglicano. Que eu saiba, nada, mas negar que existe uma relação entre ambas as coisas, apenas porque ela é desconhecida, é cair numa falácia. E cair numa falácia é tão mau quanto cair num poço.
terça-feira, 8 de junho de 2021
Uma pendência
Num pequeno excerto de um texto de Enst Jünger, leio que tudo o que nos cerca está impregnado, mais do que da racionalidade luminosa, de um cerrado mistério. Ele escreveu isto em 1916, em plena guerra mundial, nas instalações do Batalhão a que pertencia. Talvez a iminência da morte torne as pessoas mais sensíveis ao mistério, talvez existam pessoas mais sensíveis que outras. O texto reflecte uma pendência a que poderíamos chamar uma nova querela entre antigos e modernos. A racionalidade luminosa seria o facho erguido pelos modernos. O cerrado mistério, a sombra dos antigos. É possível, porém, que as coisas sejam bem mais simples. Quem conseguiria viver, envolvido em mistério, toda uma vida? Este dá profundidade à existência, mas as pessoas, como as crianças perante a escuridão, ficariam inseguras e temerosas. O que os pais fazem é ligar o interruptor, para que a luz dissipe o medo. A racionalidade dos modernos é essa luz. Não desfaz o mistério, mas oferece tranquilidade e segurança, ocultando-o na própria luz. A escola e as árvores que a envolvem oferecem-se ao meu olhar tranquilo, batidas pela inclemência da luz de Junho. Se ali há algum mistério, a luz não o deixa ver.
segunda-feira, 7 de junho de 2021
As horas
O dia deslizou rapidamente. As horas, quando mais precisamos que dilatem, mais elas têm uma inclinação para minguar. Esta separação entre as horas cronológicas e as psicológicas será sentida por toda a gente. Há uma duração uniforme, pautada pela convenção que inventou a divisão do dia em horas, destas em minutos e destes em segundos. Tudo isto parece, se se olha com exactidão, de uma regularidade imutável. Todavia, o mesmo não se passa no nosso pobre espírito. A regularidade torna-se em irregularidade, conforme as paixões que nos atormentam. Por vezes, uma hora não é mais que alguns segundos. Outras, contudo, parece dilatar-se, com se fosse tomada por um desejo hiperbólico. Hoje precisava de horas pouco dadas a grandes velocidades. Elas decidiram o contrário. Nem nas nossas horas temos mão.
domingo, 6 de junho de 2021
Enviesar os olhos
Talvez seja uma ilusão de óptica, mas os loendros da escola aqui ao lado já floriram. Arbustos verdejantes deixam-se trespassar por pequenas mancha cor-de-rosa. Sob o sol, brilham e, tocados pelo zéfiro, dançam ondulantes perante o meu olhar. A vida vegetal não é menos enigmática que a animal. É menos dada a fogos-de-artifício, a grandes explosões de ira, aos jogos onde a vida e a morte se entregam a núpcias que parecem eternas. Se mata, é por descuido da natureza ou da vítima. O domingo corre para a hora de almoço. Vai chegar quase aos 30 graus, para anunciar a praga do Verão. Irei, como é habitual aos domingos, almoçar tarde. Uma conversa havida sobre arte chegou ao grau de perplexidade que é habitual neste tipo de conversas. A dificuldade de oferecer uma definição consensual do fenómeno. A conversa acaba sempre por resvalar para um certo tipo de cepticismo, cujo pano de fundo é a impossibilidade de definir o que é uma obra de arte. Talvez Johann Scheffler, para desgosto de filósofos que fazem profissão da arte do argumento, possa ajudar. Uma ajuda inadvertida, como todas as boas ajudas. Viveu no século XVII e ficou conhecido por Angelus Silesius. Um pequeno poema diz-nos a rosa é sem porquê; floresce porque floresce / não cuida de si mesma; não pergunta se alguém a vê. Talvez a arte seja essa rosa sem razão e a procura de razões daquilo que a não tem seja uma doença. Uma doença, perguntará o eventual leitor. Uma doença ocular, direi, talvez não seja cegueira profunda, mas uma forma de enviesar os olhos. Imagino que os que procuram definir arte ou rosas ou seja o que for sejam vesgos. Isto, porém, são imaginações e fantasias de um domingo em que se almoça tarde.
sexta-feira, 4 de junho de 2021
Pesadelos e catarses
Nos últimos dias voltei a um lugar de que muito gosto. Revi dois filmes de Ingmar Bergman. Primeiro, Persona. Depois, Sonata de Outono. Talvez logo reveja um outro. Há autores que nunca me cansam. Talvez toquem qualquer coisa de essencial e, por isso, obrigam o espectador a comprometer-se com a sua obra. Conheço muita gente que detesta o cinema do realizador sueco, que o acho soporífero. Eu encolho os ombros e penso que mais vale adormecer com um filme do Bergman de que com um comprimido. Será menos tóxico. A tarde de sexta-feira corre desvairada, como se uma ânsia a precipitasse para o rápido fim-de-semana. Recebo mensagens no telemóvel, abro-as, sorrio, para depois voltar os olhos para o horizonte. Toldam-no algumas nuvens, mas passarão. O vento de Norte empurrá-las-á para longe, para que a noite se cubra de estrelas, e os sonhadores tenham motivo para os seus sonhos. Também os dois filmes de Bergman tratam de sonhos, mas pouco benévolos. A vida dos seres humanos pode ser um enorme pesadelo. O cinema de Bergman tem um ponto de contacto com a tragédia grega. Funciona como catarse. É, para os espectadores, um exercício de purificação.
quinta-feira, 3 de junho de 2021
Transubstanciação
Hoje deu-me para andar a cismar sobre coisas que não aproveitam a ninguém. Pensamos que muitos dos nossos gestos têm um significado determinado pelas próprias circunstâncias onde eles ocorrem, sem que uma outra ordem intervenha para lhes dar sentido. Isto veio a propósito de gestos como os de Marcel Duchamp, que enviou um exemplar de um urinol fabricado em massa para uma exposição de arte ou que transformou em obra de arte uma trivial pá de limpar neve, dando-lhe o irónico nome de Antecipação de um Braço Partido, ou de Andy Wahrol que mostrou as Brillo Boxes, vulgares caixas de esfregões de palha de aço, como obras de arte. Estes gestos são matéria que facilmente pode conduzir a meditações sobre a dessacralização da arte. No entanto, essa seria uma visão errónea daquilo que está em causa. Eles inscrevem-se numa cultura que tem como um dos seus fundamentos a transubstanciação do pão e vinho no corpo e sangue de Cristo. O que estes artistas fazem é transubstanciar objectos do quotidiano em objectos de uma outra ordem, em obras de arte. Os seus gestos não devem ser interpretados apenas – ou principalmente – como provocações ou questionamento sobre o que é a arte, mas como rituais de consagração que transformam o trivial no extraordinário. Com isto fazem uma revelação sobre o que é um artista e o que é a arte. O artista é um sacerdote e a arte é o exercício desse sacerdócio, que opera a transubstanciação, esse gesto ritual de consagração que transforma os materiais vulgares em materiais nobres. Esta fútil meditação talvez tenha nascido por hoje ser feriado, ainda por cima feriado religioso, o dia do Corpo de Deus.
quarta-feira, 2 de junho de 2021
Santa trivialidade
A meio da manhã tive uma aberta e fui à farmácia. Apresento a receita, a farmacêutica investiga na base de dados. Não temos agora, só logo à tarde, diz. Só vendemos até hoje um medicamento desses, acrescentou. Acredito, respondi. Foi a mim. Encomendei duas embalagens, pois aquilo tem um preço desagradável e talvez se possa estragar armazenado na gaveta dedicada a sucursal da farmácia. Dá para dois meses. De tudo isto concluí que pouca gente tem o problema que eu tenho ou segue a mesma terapia. Com o passar dos anos acumulam-se os medicamentos necessários para sobreviver. Rio-me, sempre que tenho de retirar os comprimidos das embalagens. Não apenas pela quantidade, mas porque o acto é mais um exemplo da lei de Murphy, adágio sobre o qual ainda ontem tive uma conversa. O provérbio diz o seguinte: Qualquer coisa que possa correr mal, correrá mal, no pior momento possível. Há vários exemplos da lei. O pão cai sempre com a manteiga para baixo. A fila do lado anda sempre mais depressa. A informação mais importante de qualquer mapa está sempre na dobra ou na margem. Tudo isto é informação recolhida na Wikipédia. Eu acrescento um exemplo medicamentoso: quando se querer retirar um comprimido de uma caixa, abre-se sempre esta pelo lado errado. O lado errado é aquele onde se encontra a dobra da bula, que não permite aceder ao colírio salvador. Com tanta coisa importante, as minhas preocupações centram-se no que é trivial. Talvez, oiço dizer, nada mais exista a não ser a trivialidade. Uma ideia que me repousa e reconcilia comigo.
terça-feira, 1 de junho de 2021
Começar com um refugiado
Sem se dar por ele, Junho instalou-se. O dia esteve carregado, como se ameaçasse tempestade. O corpo, envolvido pela tensão eléctrica, exigia-a. O tempo, porém, recusou-se a um espectáculo de luz e de bombos celestes. Manteve sempre uma tonalidade crepuscular e na rua a temperatura não subiu muito. Descubro que a pintura representou pela primeira a Via Láctea em 1609. Coube o feito a Adam Elsheimer, numa representação da fuga para o Egipto. Curiosamente, só em 1610, no Siderius Nuncius, é que a ciência moderna, então a dar os primeiros passos, confirma, pelo trabalho de observação de Galileu, aquilo que o pintor mostrara, a nossa galáxia como uma acumulação de incontáveis estrelas. Especula-se que o pintor também teria algum interesse pela ciência e que talvez tenha dado uma espreitadela num desses primeiros telescópios. O quadro encontra-se na Alte Pinakothek, de Munique, onde a Via Láctea se continua a mostrar tal como a viu Elsheimer e a Sagrada Família, sobre um burro, permanece em fuga para o Egipto. A religião cristã começa com um refugiado. Talvez isso devesse dizer alguma coisa Europa fora, não se tivesse tornado esta mais pagã que cristã. Por aqui, nada indica que se possa contemplar a Via Láctea, esta noite.
segunda-feira, 31 de maio de 2021
Prolegómenos
O crepúsculo é cada vez mais tarde, pensei ao olhar para a luz ainda viva. Mais logo virá a noite com o seu império feito de trevas, a vida adormecerá lentamente, até que a aurora faça soar as trombetas, para que homens e animais retomem a azáfama que a despótica realidade lhes impõe. Leio, num poema de um poeta polaco, que um alemão na esplanada de um café tinha sobre os joelhos um pequeno livro. O título era Mística para Principiantes, e o poeta foi descobrindo, nessa língua incompreensível que é o polaco, que tudo o que sucedia não seria outa coisa que uma introdução ou uns prolegómenos a essa mística, seja ela o que for e qual for. O tradutor cometeu um deslize e traduziu prolegomena por prolegómeno, mas a palavra não existe em português a não ser no plural. Consultei o habitual dicionário da Porto Editora e o indispensável Houaiss. Aliás, prolegomena é uma palavra latina que se encontra no plural. Noutra encarnação, quando me dedicava a coisas para as quais não tinha qualquer competência, li um livro com o épico título Prolegómenos a Toda a Metafísica Futura que Queira Apresentar-se como Ciência. Hoje em dia, consumada a minha falta de préstimo para prolegómenos, introduções e prefácios, escrevo uns pequenos textos insípidos e que, se utilizados com cuidado, permitem bocejar, e como se sabe todos os bocejos são autênticos prolegómenos ao sono.
domingo, 30 de maio de 2021
Tresleituras
Um velho domingo de Maio. As temperaturas chegaram aos 33 graus, para que alguém distraído não se esqueça que isto não é o paraíso. Contrariamente aos meus hábitos, tive de ir fazer as compras semanais no dia de hoje. A cidade estava luminosa, mas de uma luz ameaçadora, vítrea. O calor ainda se está a entranhar nas paredes das casas e prédios, mas não tarda começará a ressumar deles, caindo sobre as ruas como lava expelida por um vulcão. Consulto as previsões para a semana que vem. Não são de molde a tranquilizar-me. Preciso de retomar as caminhadas, mas agora só pela noite, onde a temperatura se torna mais amigável. Há pouco passei os olhos por um título de uma entrevista. Li Eu fui uma privilegiada pelos pais que tive. Passado um bocado, tornei a passar os olhos pelo mesmo título e descobri que lá estava outra coisa, Eu fui uma privilegiada pelos filhos que tive. O que leva a mente – pelo menos, a minha – a cometer erros destes? Talvez a minha leitura se deva ao preconceito. Qualquer privilégio é herdado e não recebido de quem vem depois. As mentes humanas são máquinas frágeis e dessa fragilidade faz parte a tresleitura, a qual tem uma dimensão muito mais ampla que a leitura, quero dizer a leitura correcta. Ando falho de imaginação, essa é a verdade.
sábado, 29 de maio de 2021
A vontade pervertida dos objectos
Nunca deixa de me impressionar o número de coisas que encontro apenas quando não preciso delas. Assim que as quero requisitar para algum serviço urgente, elas decidem ocultar-se nos sítios mais inverosímeis e recônditos. Tendo passado a necessidade de uso, por ter desistido de o levar a efeito ou por ter resolvido o assunto de outro modo, elas reaparecem todas lampeiras e, como se fossem cãezinhos amestrados, não param de abanar o rabo. Isto não se deve a uma arrumação caótica do meu mundo, mas à vontade pervertida dos objectos criados pelo homem. Têm vida própria, pelo menos quando preciso de alguns deles. Um pouco mais acima escrevi a palavra lampeiras. Não sei se não passa de um regionalismo ou se o seu uso se estende a todo o território nacional. Antigamente, ouvia-a muito, mas agora ou caiu em desuso ou estou a ficar surdo. Julgo que virá de lampo. Por aqui classificam-se como lampos os figos temporãos. Fazem as delícias dos amantes do fruto, clube no qual não me incluo. O meu neto passou quase oito horas comigo. É a primeira vez desde que a pandemia começou. Tentámos recuperar algum tempo perdido. Eu tive a minha dose de A Masha e o Urso e também da Galinha Pintadinha. Esta é uma velha conhecida. Um sábado já inclinado para o Verão, embora um vento moderado de Noroeste baixe a temperatura e torne desagradável andar na rua. Não tarda e o dia está passado.
sexta-feira, 28 de maio de 2021
Requiem para uma máquina
Um velho computador, mas que ainda prestava um ou outro serviço relevante, decidiu entregar a alma ao criador. Não será bem isso. Ele ainda tem sinais vitais. Foi, naqueles tempos em que todos os outros sopravam desalmadamente, um aparelho silencioso. Uma ventoinha discreta fazia a minha felicidade. Depois, foi substituído, mas ali estava para fazer isto ou aquilo. Hoje precisava dele. Liguei-o. Não apenas começou por se recusar a enviar imagem para o monitor, como quando o fez foi para assinalar erro. Depois, nem isso. Limita-se a soprar com violência, como se se preparasse para levantar voo. Vai deixar a tela, como os brasileiros chamam aos monitores, viúva. Uma tristeza. A minha relação com os seres humanos deve andar tensa, para não falar deles e dedicar um requiem a uma máquina decrépita. As coisas são o que são. Não há nada como uma tautologia para rematar uma conversa ou acabar um texto, mesmo à sexta-feira. Assim seja.
quinta-feira, 27 de maio de 2021
Injustiças vegetais
Ao olhar o entardecer deste dia de Maio recordei-me de dois versos de Eliot: What is the late November doing / With the disturbance of de Spring. Lembrei-me não porque estejamos em Novembro, mas porque este dia de um Maio tardio está com ademanes de Outono. Com algum calor, mas céu nublado e uma atmosfera tensa, como se a terra estivesse a pedir uma tempestade libertadora das más energias que se acumularam. Há pouco, voltei a contemplar os dois jacarandás que moram num quadrado relvado do outro lado da avenida. Um está cada vez mais exuberante, coberto com flores roxas a abrirem-se para o espanto de quem as pode olhar de cima. O outro, coitado, é o jacarandá pobre, sem meios para comprar roupa vistosa, um maltrapilho com as suas esparsas folhas verdes e uma ou outra flor. Nem no mundo vegetal a justiça distributiva funciona. Aparentemente, ambos tiveram as mesmas oportunidades, mas um aproveitou-as e cobre-se de glória, o outro vai acabar mal. Não devia estar com estas considerações, pois são impróprias de um mero narrador proibido, pelo autor, de falar sobre este tipo de assuntos. Procuro com os olhos os loendros da escola vizinha, mas ainda não floriram. Não consigo distingui-los da vegetação envolvente. O crepúsculo prepara-se para cobrir a cidade com um véu de hesitações. Há dias em que não tenho nada para dizer. São quase todos. Um pássaro passou diante da minha janela. Há quem diga que era um estorninho, respondo que não. Um anjo disfarçado.
quarta-feira, 26 de maio de 2021
Contra-conformista
Voltaram as antigas quartas-feiras. A pandemia ainda não foi dada como extinta, mas o conjunto musical da escola vizinha retornou em força. Tanto quanto sei, o conjunto é formado por professores, ou pelo menos por um, o vocalista, um rapaz do meu tempo, colega de colégio. Parece-me que estão a alargar horizontes musicais. Para além daqueles velhos slows dos bailes de há décadas, música para constituir família, foram adicionadas ao repertório umas composições mais hard-rock. Seja como for, não o posso jurar, pois sou um absoluto leigo nesse tipo de música. Consegui constituir família sem recurso a slows e de hard-rock só conheço os cafés, não por os frequentar, entrei uma vez no de Lisboa, mas por ouvir dizer. Confesso que tentei várias vezes gostar dessa música que animou a alma da minha geração, mas tive de reconhecer que sou um desalmado. Há pouco fiz uma intervenção num fórum online restrito sobre uma determinada temática que, embora venha para salvar a pátria da sua contumaz miséria, não vou aqui divulgar. Se sou para a música dos meus tempos um desalmado, continuo com a mesma alma que tinha nesses tempos. O prazer de estar contra. Há os conformistas, que estão sempre a favor, e há os contra-conformistas – não confundir com inconformistas – que estão sempre contra. Estar contra parece fácil, pois tudo o que é feito pelo homem é precário e imperfeito. No entanto, estar contra é uma arte. Exige que se explore aquilo que se vai contestar, se lhe descubra a imperfeição, se contribua para que melhore. É isto que um filósofo famoso do século XX propunha para a ciência. As teorias científicas não se podem confirmar, mas há que mostrar que são falsas, para se encontrarem outras melhores. Não se pense que estar contra seja o resultado de um elevado heroísmo. Não é. É, antes, uma coisa que está na massa do sangue, contra a qual não se pode lutar. O grupo de baile voltou aos slows, embora já ninguém constitua família desse modo.