segunda-feira, 20 de junho de 2022

Serões de província

Diante de mim, um livro publicado em 1940. Tem uma assinatura e, como data, apenas o ano de 1942. Isto na parte superior da terceira página. Na parte inferior, todavia, existe uma dedicatória e uma assinatura. Existe também a data de 16-XI-59. Percebe-se que, apesar de diferenças assinaláveis, é a mesma assinatura. A de uma mulher, embora não se consiga decifrar o nome. Terá comprado o livro em 1942 e ofereceu-o à filha e ao genro dezassete anos depois. Aliás, tenho outro livro da mesma autora com a assinatura da filha com a data de 21 de Fevereiro de 1942. Parecia haver aqui uma tradição familiar na compra de livros, mas chegou o dia em que essa tradição desapareceu e a biblioteca familiar – se é que havia uma biblioteca – foi vendida a alfarrabistas, o que me permitiu muitas décadas depois comprar ambos os livros. Que pessoas seriam aquelas? Teriam alguma posição social. A filha era tratada por um diminutivo que só ocorreria em classes socais com algum estatuto. A mãe sabia escrever e tinha uma letra que denotava não possuir apenas uma educação básica. Além disso, lia. O que lia ela e a filha? Sarah Beirão. Portanto, uma família culta, mas esteticamente ancorada no passado. As senhoras deviam ler, faria parte da educação, talvez mesmo da educação sentimental. Aliás a colecção onde os livros de Sarah Beirão se inserem, Colecção Portuguesa de Domingos Barreira – Editor, afinam pelo mesmo diapasão. A maior parte dos autores são desconhecidos, mas os títulos não enganam. Perguntar-se-á como sei eu que uma das mulheres é a mãe e a outra, a filha? Porque antes da assinatura da oferta se encontra a expressão da mãe mt amiga. Está uma segunda-feira melancólica. A temperatura, por aqui, não chegou sequer aos 24 graus. Felizmente, mas o dia está coberto com um véu – uma mantilha – de nostalgia. Quase que sinto uma funda simpatia por estas senhoras de boa sociedade provinciana. Como é que eu sei que eram da província. No livro da filha, está lá o nome do local onde vivia, uma cidade, nos dias de hoje, da Beira. As coisas que se descobrem com pequenos vestígios. Ou pelo menos imaginamos descobrir, para virmos aqui narrar como se estivéssemos num serão de província.

domingo, 19 de junho de 2022

Da obesidade do tempo

Há qualquer coisa errada nas apreciações correntes sobre a passagem do tempo. Não são poucas as pessoas, onde se inclui este narrador, que têm a impressão – ou mesmo a certeza – de que o tempo passa cada vez mais depressa. Ora, tive a prova irrefutável de que não é assim. Pelo contrário, o tempo está a passar mais devagar. Ontem falei da súbita manifestação no meu horizonte sonoro de um amola-tesouras e referi – ou pensei fazê-lo – a decepção de não ter chovido. Cheguei mesmo ousar escrever que há alguma coisa a funcionar mal no mundo, o que, em boa verdade, é uma impossibilidade, pois, como todos sabem, vivemos no melhor dos mundos possíveis. Ontem não choveu, mas hoje sim. O som da flauta de pã do amola-tesouras sempre é anunciador de chuva, só que esta atrasou-se. Melhor, o tempo passou mais devagar, como se os segundos tivessem sofrido uma dilatação. Isto traz um importante problema sobre a relação entre o tempo e o mundo. Se o tempo pertence ao mundo e este é o melhor dos mundos possíveis, então temos aqui um sarilho qualquer. A minha intuição é que o tempo não pertence ao mundo e, por isso, a sua obesidade, não afecta o facto de este ser o melhor dos mundos. Os atrasos que há nele não se devem a ele, mas a um factor estranho – o tempo – que não deve ser tido em consideração quando se julga a bondade deste mundo. Isto tem aplicações extraordinárias. Por exemplo, por que razão os transportes públicos andam sempre atrasados? Não por eles, que são os melhores transportes públicos possíveis, mas porque o tempo, por falta de ginásio, se dilatou. Esta também é uma excelente explicação – que nunca me tinha ocorrido – para um problema que me atormenta com alguma regularidade, o do atraso das consultas médicas em relação ao horário acordado. Os médicos não se atrasam, o tempo, que é um factor estranho à medicina, é que se dilata. Penso que para um domingo, uma descoberta como esta é razão suficiente para me sentir realizado, dilatadamente realizado.

sábado, 18 de junho de 2022

Amola-tesouras

Acabei de ouvir o som inconfundível da flauta de pã tocada por um amola-tesouras. Deu-me, de imediato, vontade de ir perscrutar o horizonte e descortinar se ali havia nuvens negras. Contive-me e consultei a aplicação no telemóvel. Sou informado de que a possibilidade de ocorrer chuva é nula. Há qualquer coisa que está a funcionar mal no mundo. Se chega um amola-tesouras, então vai chover. Se fosse dado à lógica, coisa que não sou como se pode ver por estes textos, diria que estamos perante uma proposição condicional. Sendo a proposição antecedente – chega um amola tesouras – verdadeira e a consequente – vai chover – falsa, fica provado que, por menos neste caso, a velha sabedoria ao gosto popular, saber que tanto me anima a alma de narrador de nulidades, tem graves problemas. Abri a janela e chegou até mim alguma esperança. Avisto nuvens, talvez elas se apiedem dos velhos saberes e façam o favor de deixar correr alguma água, só para aquela proposição condicional passar a ser verdadeira e evitar que as tradições morram desmentidas pela experiência. Falando mais seriamente (ainda), sempre achei estranho o modo como esses agentes económicos – um amola-tesouras é um agente económico – surgem inopinadamente no meio de um lugar. Nunca acreditei que eles viessem de um outro sítio, que percorressem um caminho para chegar ali e tomassem outro para se irem embora. A experiência é interessante pois está ligada à audição. De súbito, ouve-se a flauta de pã, a qual é tocada uma meia-dúzia de vezes, e depois, também subitamente, deixa-se de ouvir. Isto prova que os amolas-tesouras são seres fisicamente inexistentes, mas que se materializam e desmaterializam. Como prova adicional, para quem queira dizer que isto infringe a inferência da melhor justificação, que seria mais sensato crer que eles chegam e partem como qualquer mortal, posso aduzir com o problema da sua própria existência. Como podem existir amola-tesouras se não há quem tenha tesouras ou facas para amolar, ou mesmo chapéus de chuva para consertar? Se uma tesoura ou uma faca ficam rombas ou um chapéu de chuva se estraga, vai tudo para o lixo e compram-se novos instrumentos. Não é sensato crer na existência económica de amola-tesouras, logo, pois a economia é a condição de possibilidade da existência no mundo actual, não existem amola-tesouras, por muito que oiçamos flautas de pã a anunciá-los. 

sexta-feira, 17 de junho de 2022

Water-closet

Imagino que por falta de assunto ou por ser sexta-feira à tarde, hoje começo (ou quase) com uma citação, encontrada na internet (vazadouro onde se encontra de tudo) de Fialho de Almeida sobre o distinto grupo Os Vencidos da Vida: Dúzia e meia de ratões que, quando juntos, o que pretendem é jantar; depois de jantar, o que intentam é digerir; e digestão finda, se alguma coisa ao longe miram, tanto pode ser um ideal, como um water-closet. Concebo que naqueles dias a expressão water-closet ainda não se tinha resumido a WC, mas talvez esteja a tornar manifesta a minha ignorância. Haverá, por certo, quem aprecie a ironia na referência aos ratões ou às suas actividades pantagruélicas. Porém, o mais subversivo está nesse dilema posto naquilo que esses folgazões miram. Ou o ideal, ou o water-closet, isto quer dizer que, em boa verdade, o ideal está em concorrência com a casa de banho. A partir desta aproximação, deixo à venturosa imaginação do leitor o que pensar do idealismo. Não me comprometo. Seja como for, a agremiação recreativa Os Vencidos da Vida sempre me foi simpática. E é nestas coisas que nós, portugueses, nos mostramos como um povo vetusto e, por isso, sábio. Algum americano poderia reconhecer-se como um loser? A designação, porém, é demasiado ambígua. Aparentemente, é negativa. Aqueles intelectuais reconhecem-se como derrotados. No entanto, a expressão pode ser lida de outro modo. A vida é de tal modo exuberante que submerge as pretensões do intelecto. Uma leitura mais nietzschiana. Assim, não estariam a lamentar as derrotas pessoais, mas a celebrar a vitória da vida sobre as suas ilusões. O grupo gerou, no meio literário lisboeta, escárnio, maldizer e, principalmente, inveja, coisa de que a nossa velha sabedoria ainda não nos curou. Abel Botelho escreveu uma peça de teatro que tinha por título Os Vencidos da Vida. A polícia decidiu proibir a representação porque, segunda consta, continha um elevado grau de violência satírica pessoal. Não sei se a peça foi publicada. Não consegui encontrar-lhe rasto. Sei que tanto os vencidos da vida como os que, com mal disfarçada pena, não pertenciam ao grupo estão mortos, vencidos pela morte, mesmo aqueles cujo nome ainda se celebra. Uma coisa é a vida e outra o nome. Ou será que a vida de uma pessoa não passa do nome que ostenta? Ou, ainda, tanto uma coisa como a outra, no water-closet, têm por destino ir cano abaixo? 

quinta-feira, 16 de junho de 2022

Eros, esse deus caprichoso

Para um feriado, saí cedo de casa. Umas compras a fazer, coisa para despachar rapidamente, e poder dedicar-me a uma das minhas actividades preferidas, isto é, não fazer nada. Eram nove da manhã quando estou a passar por um sítio onde lavam carros. Espreito para ver se estava aberto. Estava, havia dois empregados e apenas dois carros para lavar. É hoje, pensei. E não vai demorar, disse para comigo. Entrei. Era o terceiro, coloquei o carro na fila e aguardei sentado num banco de madeira. A organização empresarial foi benévola para mim e ofereceu-me duas horas e meia para estar ali sem fazer nada, enquanto os funcionários aspiravam e lavavam as viaturas com ademanes de amantes apaixonados e carinhosos. Acariciavam e massajavam os carros, tudo sem pressa, pois o amor é coisa para saborear com lentidão. Por mim, e apesar de gostar de não fazer nada, preferia que a lavagem fosse menos erótica, mais veloz, que o amplexo entre os funcionários e as viaturas, caso fosse mesmo necessário, não ultrapassasse a amplitude de uma rapidinha, e não se tornasse aos olhos de todos uma ménage poliamorosa com requintes de filme erótico para ocupar três horas as salas de cinema. Perdida a manhã, decidi ir pôr gasolina. Aqui, além da manhã, perdi o dinheiro. Perdido por cem, perdido por mil, vou ver a pressão dos pneus. Indescritível. Estava miseravelmente baixa. De tal modo que num deles a máquina se recusou a trabalhar várias vezes. Prometi a mim mesmo que cada vez que for trocar euros por gasolina hei-de ver a pressão dos pneus. Entre mim e os carros não há qualquer mediação de Eros. O investimento do meu desejo não recai sobre eles. Por mais curvas ondulantes que tenham, não me acendem a libido. Portanto, carro meu tem todas as razões para me ser infiel. O tempo aqui continua tempestuoso. Chove e troveja. A tensão existente não é minha amiga. Rouba-me o prazer de não fazer nada. Vou ocupar-me de alguma coisa.

quarta-feira, 15 de junho de 2022

Um imenso borbulhar

Um concerto de corta-relva. O solista esforça-se, mas a orquestra não o ajuda. Talvez o compositor não tenha tido em consideração a potência sonora do instrumento mecânico e a sua possível incompatibilidade com os diversos naipes instrumentais. Por isso, o cortador de relva parece perdido no próprio relvado que tem para cortar. Quando, por instantes, suspende a actividade, consegue-se ouvir os carros, o vento e até um coro de adolescentes. Talvez tudo isto não passe de um ensaio. Tenho particular pouca sorte. Este tipo de espectáculo acontece sempre que estou em casa. Também podia fechar as janelas, é verdade. Ia escrever que a mente humana é muito volúvel, mas corrijo. A minha mente é muito volúvel, a dos outros não faço ideia. Iria cometer uma generalização precipitada e, porventura, injusta. Mesmo agora a volubilidade da minha me deu uma prova irrefutável, mais uma. Não sei porquê, mas passou de um argumento sobre a existência de Deus da autoria de Anselmo de Cantuária para as 24 Horas de Le Mans, do ano de 1972. Por mais que procure em mim, não encontro razão para qualquer um destes pensamentos me ter vindo, nem um motivo para saltar de um para o outro. Não têm ligação entre si. Poderia explorar este estranho encontro para dizer que a mente é um lugar onde borbulham pensamentos sem que para esse borbulhar haja razões. Serão de geração espontânea. Eu sei que haverá logo quem afirme que pelo facto de eu não saber a razão desses pensamentos não significa que ela não exista. Concedo que poderá ser assim, mas, com a temperatura que está, hoje adopto a teoria da geração espontânea. A ideia de que o que acontece tem causa e que está determinado é uma ilusão fundada na necessidade humana de encontrar explicações para acalmar os medos que o incausado provoca. A realidade, tal como este texto, não passa de um imenso borbulhar sem causa nem sentido, o conjunto de irrupções súbitas sem que nada as provoque ou produza. Julgo que com este calor, nem o santo de Cantuária me vale. Cada vez tenho piores ideias, mas são as que me ocorrem, isto é, as que borbulham ao acaso na minha mente, se é que tenho uma.

terça-feira, 14 de junho de 2022

O princípio de farsa

Quando as coisas são vistas de fora, tudo o que parece decisivo mostra-se como risível, objecto possível de um sorriso malicioso ou de uma boa gargalhada, mesmo se ingénua. Se há coisa que acalora ainda hoje apoiantes e adversários – por motivos contrários, claro – é o 25 de Abril de 74. Sobre a data fazem-se juras de amor eterno ou proclama-se um rancor que nem no inferno será apaziguado. Contudo, a leitura da meia-dúzia de páginas que Alexander Kluge dedica ao acontecimento, no volume II da sua Crónica dos Sentimentos, acaba por tornar todo este excesso de sentimentalidade não apenas anacrónico como ridículo. Não terá sido por acaso que essas considerações são feitas no volume com o título A Queda para Fora da Realidade. Nisto não há uma crítica – favorável ou desfavorável – ao acontecimento português, mas ao entusiasmo que, na época, os jovens estudantes alemães – ainda grávidos das ideias de 68 – dedicaram ao assunto, onde viram a possibilidade de conjugar a revolução e o romantismo, antes de se fazerem à vida. Um desses jovens – a vítima do texto de Kluge – escreve: Durante muito tempo [Portugal] fica imune aos conflitos do resto do mundo. Explora os recursos das suas colónias com uma crueldade indolente, mediana. Contudo, é o próprio Kluge que afirma: Depois, a revolução de 1974 empurra Portugal para a realidade do século XX. A princípio com traços de conto de fadas: um Presidente de monóculo, claramente vindo de outro tempo, une o Norte e o Sul do país, sociedades inconciliáveis. Um conto de fadas com um Presidente de monóculo. Como, perante esta leitura cruel, os sentimentos ainda poderão encontrar combustível para se incendiar? Não se pense, porém, que o caso português é excepcional. Não, todos os grandes, e os pequenos, acontecimentos são habitados, de forma mais clara ou mais obscura, por um princípio de farsa. Por trágicos e grandiosos que eles sejam, contêm sempre uma farsa. Isto dever-se-á ao facto de todos nós, seres humanos, sermos, na realidade, uns farsantes. E é essa qualidade que transportamos para tudo o que fazemos. Um dos talentos de Kluge – que não será menos atreito à farsa – é, em poucas palavras, mostrar a farsa onde os outros vêem coisas que lhes incendeiam as paixões. E aqui temos uma revelação: o conúbio entre a paixão e a farsa. Sobre este casamento, todavia, resguardo a minha opinião. Por hoje.

segunda-feira, 13 de junho de 2022

Santo António

Está a ser um ano péssimo para as orquídeas aqui de casa. À exuberância de outros tempos sucedeu um desalento inexplicável. Uma parte não floresceu ainda – algumas prometem mesmo não dar flor – e as que floresceram fazem-no de um modo triste, melancólico, deixando as folhas murcharem rapidamente. O friso das orquídeas já teve melhores dias. Em Lisboa, é dia de feriado municipal, dia de Santo António. Ainda não compreendi a falta de previsão política dos sucessivos regimes que nos têm pastoreado. Perante a tensa disputa sobre se o santo é de Lisboa ou de Pádua, coisa que chega a envolver académicos, tê-lo como patrono de um feriado nacional seria um argumento convincente a favor da tese lisboeta. Promovê-lo a santo nacional para dar uma dura machadada nas pretensões dos paduanos e favorecer as dos lisboetas. Depois, todos os portugueses poderiam ir à praia ou a banhos noutros locais e não apenas os lisboninos. Onde me encontro, aa pequena cidade que me vê arrojar o peso da existência, estão previstos 40 graus lá para as três da tarde. Uma realidade excessiva para a minha capacidade de a suportar. Encerro-me dentro de casa, corro persianas e espero não ter de pôr um pé fora de casa, mas não sei se tenho sorte. Umas crianças em transição para o momentoso período da adolescência esganiçam-se na praceta. O sol não lhes afecta o corpo nem os neurónios. Talvez eu já tivesse sido assim, mas não juro. Movido a insónias progrido na leitura de A Consciência de Zeno, de Italo Svevo. Alguns aspectos mais risíveis da personagem Zeno lembraram-me uma outra personagem, Giovaninno, do romance À Descoberta de Milão, de Giovanni Guareschi, o autor dos épicos romances cujas personagens principais são o padre D. Camilo e o líder comunista Peppone. Fui verificar as datas de edição e o livro de Svevo – aliás, Aron Hector Schmitz – antecedeu o de Guareschi em 18 anos. Talvez este tenha sido influenciado, de algum modo, por aquele. Agora tenho mesmo de sair e encarar o dragão do calor. Uma aventura que enfrento, mesmo sem lanças nem flechas.

domingo, 12 de junho de 2022

Num limbo

Não tarda e terei de regressar a casa. Segundo sou informado, as temperaturas na pequena cidade onde levo a existência quotidiana terá chegado perto, demasiado perto, dos 40 graus. Nem sei bem o que dizer, pois só de pensar no caso sinto uma vertigem. Por aqui o tempo está espantoso, 21 graus, apesar de haver sol. O meu neto veio passar parte do dia comigo. Nos seus três anos e meio conseguiu arrastar-me à praia, um sítio que evito. Há qualquer coisa que os netos possuem que contamina os avós e os leva a fazerem coisas que, noutras circunstâncias, se recusariam a fazer. Depois, os netos vão-se embora e os avós ficam sozinhos, entregues a si num mundo que começa a não ser o deles. Nunca foi, claro, mas havia a ilusão de se pertencer a uma certa realidade, onde se reconheciam sem questionamento regras e hábitos. Agora, tudo começa a estranhar-se. Nessa estranheza emerge uma inquietação, e esta sublinha a distância, cada vez maior, entre o mundo a que se pertence e o mundo que existe. O mundo a que se pertence já não existe. O mundo que existe não tem lugar para nós. A partir de certa altura da vida entramos num limbo. Nem estamos no paraíso nem no inferno. Estamos em nenhures e quem vive em nenhures por certo não será coisa alguma. Há domingos que deveriam ser substituídos por outra coisa, talvez por um sábado. Seriam mais tranquilos, imagino.

sábado, 11 de junho de 2022

Do cultivo das aparências

Este sábado está a decorrer de modo anómalo. Comecei por fazer uma caminhada, a meio da manhã. Onde estou, a temperatura é muito moderada e o céu matinal estava coberto de nuvens. Os seis quilómetros de exercício renderam-me 72 pontos cardio. A OMS recomenda um mínimo de 150 por semana. Aceito a recomendação, embora não saiba muito bem para que serve. Quero parecer obediente. É um facto que apenas quero parecer e não ser, mas se todos cultivássemos as aparências o mundo seria um lugar muito melhor. Imagine-se um exemplo. Os dirigentes de um país estão cheios de vontade de invadir outro e destruí-lo. Contudo, prezam muito as aparências e evitam fazê-lo para não passar por belicistas e selvagens que, na verdade, são. Como se pode inferir, o cultivo das aparências é a salvação do mundo. Não há coisa pior do que essa ideia atoleimada de alguém querer mostrar o que é. Que guarde para si o que é e mostre aos outros um comportamento benévolo e afável. Estou a desviar-me do assunto. Estava a falar da anomalia do dia. Ora, para além dessa epopeia de caminhar seis quilómetros, tenho estado a descarregar uma série de romances, caídos no domínio público, de autores portugueses nascidos no século XIX e que escreveram nesse século ou no início do seguinte. Descobri uma coisa espantosa e anómala (daí a anomalia, que nada tem a ver com o conceito daquele autor que trouxe o conceito de paradigma para a ribalta, de tal modo que não há cão nem gato que não fale de paradigma). As universidades americanas e canadianas compravam a literatura portuguesa – e de muitos outros países, imagino – desse tempo para enriquecerem as suas bibliotecas. Não se pense que eram apenas os grandes nomes como Garrett, Herculano, Camilo, Júlio Dinis, Eça ou Antero. Por exemplo, Guilherme Centazzi, Manuel Pinheiro Chagas, Faustino da Fonseca, Arnaldo Gama, Joaquim Leitão e muitos outros. Fiz uma recolha interessante, num certo site americano, coisa de gente boa, interessada em partilhar o que está esquecido. Mesmo que quem o faça seja para manter as aparências, o benefício geral é imenso. Eu estou grato, a eles e às aparências.

sexta-feira, 10 de junho de 2022

A questão do dia de Portugal

Talvez seja um mau patriota. Enquanto, os portugueses celebravam o dia de Portugal, de Camões e das Comunidades – que raio de nome – eu dediquei-me, em parte, ao trabalho. Aqui que ninguém nos ouve, sempre achei este dia uma estopada, não por ser o dia nacional, mas por comparação com o 4 de Julho, dia da Independência nos EUA, e o 14 de Julho, a comemoração francesa da tomada da Bastilha. Grandes festas nacionais. O nosso pobre 10 de Junho não mobiliza ninguém. Minto. Provoca uma enorme mobilização em direcção às praias. Ninguém quer saber, neste dia, nem de Portugal, nem de Camões, nem das Comunidades. Não há festividades populares, nenhuma relação de afecto entre os portugueses e o dia. Em resumo, falhámos em ter o nosso 4 de Julho ou o nosso 14 de Julho. Com o espírito construtivo que é o meu, proponho que este feriado passe para 24 de Julho, não por ser nome de avenida, mas porque nesse dia as tropas fiéis a D. Pedro e aos liberais entraram em Lisboa e puseram os miguelistas em fuga. Foi a nossa tomada da Bastilha, o reforço da nossa independência. E como seria em Julho não destoaria desses marcos liberais do mundo moderno. Contudo, para ser exacto, o dia de Portugal deveria mesmo ser o 5 de Outubro. Nesse dia, Afonso Henrique e Afonso VII assinaram o Tratado de Zamora, que reconhece o primeiro como Rei de Portugal. A Monarquia e a República portuguesas partilham a mesma data para se comemorarem. Seria o dia ideal. Podiam manter o 10 de Junho como feriado, declarando-o como Dia Nacional da Ida à Praia. Tenho sempre óptimas soluções para os magnos problemas que nos afectam, o pior é que ninguém quer saber delas. Depois, queixam-se que o país está como está.

quinta-feira, 9 de junho de 2022

Olhar de esguelha

Gostaria de falar sobre o mundo, mas ainda não saí de casa e tenho as persianas corridas para que as ondas de calor batam nelas e recuem, perdendo-se sabe lá Deus onde. O mundo que me coube até ao momento, neste dia, chegou em forma de videoconferência e o que se acerca desse modo não é um mundo, mas um simulacro, o exercício de potências inferiores que conspiram, em plataformas virtuais, para nos enganar. Um leitor ocasional deste escrito pode perguntar-se pelo estatuto de verdade das afirmações feitas mais acima. Serão verdadeiras ou serão falsas? A questão, todavia, será irrelevante. Que diferença fará o facto de eu ter, no dia de hoje, saído e as persianas estarem levantadas? Aceitamos sem questionar que a verdade será a adequação do que é dito com a realidade. Contudo, não me parece possível estabelecer qualquer adequação entre um conjunto de palavras e factos físicos. A distância entre representante e representado é desmedida. Há um verso de Herberto Helder que talvez diga o essencial: A fantasia minuciosa. A oblíqua inovação. As palavras seriam essa fantasia minuciosa, uma inovação oblíqua. Por isso, não devemos crer que elas tenham o poder de dizer a verdade, pois estão constantemente perdidas em fantasias, com olhares oblíquos. As palavras olham de esguelha. Como se pode comprovar pelo que se escreveu acima, as videoconferências não contribuem para a sanidade mental de ninguém. Vá lá, contudo, as coisas poderiam ser piores. Em vez de ter citado um poeta reconhecido e um verso existente, bem poderia ter mobilizado como autoridade um poeta inexistente e um verso apócrifo, tão apócrifo quanto este narrador perdido na narrativa.

quarta-feira, 8 de junho de 2022

Contra o silêncio

No início de um ensaio, Carlo Ginzburg cita o dito do arquitecto Mies van der Rohe: menos é mais. Transporta-o para a sua área de estudo – a micro-história – e conclui que ao conhecer menos, ao estreitar o horizonte da investigação, acaba-se por ter a esperança de entender mais. Em tudo isto, a palavra mais sensata será esperança. A especialização contínua da ciência – seja em que área for – traz essa esperança de saber mais. Contudo, talvez se aplique a inversão da máxima de Rohe: mais é menos. Sabemos cada vez mais, mas compreendemos cada vez menos. O dramático disto reside no facto do homo sapiens sapiens necessitar, para se orientar na existência, de compreender. Não pequenas migalhas do mundo, mas do mundo como totalidade. O ‘entender mais’ fundado na redução do horizonte não mata a sede de compreender tudo, pois só dentro dessa compreensão globalizante a vida encontra um sentido. A religião e, depois, as ideologias foram estratégias encontradas para fornecer uma compreensão dessa totalidade. Ambas têm, nos dias que correm, má fama e pior imprensa. Em certas épocas, pensou-se na Filosofia como um dispositivo para fornecer uma compreensão da totalidade, mas também ela se especializou e adoptou como ideia orientadora o lema de Rohe: menos é mais. Os seres humanos encontram-se, assim, nessa singular circunstância de saberem cada vez mais coisas e de compreenderem cada vez menos para que serve esse saber e a sua própria existência. Imagino, por momentos, que deveria inventar uma máquina para fabricar cosmovisões, mas falta-me o talento não tanto para inventar máquinas, mas para tornar as cosmovisões convincentes. Talvez a única coisa que nos reste seja esperar – isto é, ter esperança – que nesse menos se manifeste um mais e, neste, se revele o todo. Tudo isto foi pensado por Francis Mute, numa das suas obras mais conhecidas, The Word of Muteness. O facto de o ter trazido para aqui não significa um acordo com a posição de Mute, mas a compulsão de não ficar calado.

terça-feira, 7 de junho de 2022

Ítaca

Há um poema de Konstantinus Kavafis denominado Ítaca. Jorge de Sena traduziu-o. Trata não tanto de Ítaca, mas da viagem que se faz para sair dela e a ela retornar. O poeta grego, na tradução do poeta português, recomenda: Mas não te apresses nunca na viagem. É um belo conselho ao arrepio do tempo, que exige que se tenha cada vez mais pressa. A recomendação de Kavafis prolonga-se: É melhor que ela dure muitos anos, / que sejas velho já ao ancorar na ilha, rico do que foi teu pelo caminho. A viagem é uma metáfora da própria vida. E Ítaca? O poema acaba assim: Sábio como és agora, / senhor de tanta experiência, terás compreendido o sentido de Ítaca. Há um tom pessimista no belíssimo poema. Se a viagem é a vida, então Ítaca é a morte, esse lugar de onde se parte e a onde se chega. Dir-se-á que é absurdo o desejo de uma longa viagem, se o fim é a morte. Contudo, o que sabemos nós da morte de onde partimos e daquela a onde chegaremos? Esse pessimismo disfarça um optimismo que será, a meus olhos, inexplicável. O da esperança de que a experiência nos torne sábios e nos dê a compreensão dessa morte. Dar-nos-á, quando dá, a indulgência para com o destino, mas isso não nos traz qualquer compreensão, mas apenas a resignação.

segunda-feira, 6 de junho de 2022

Actos falhados

Deveria escrever sobre o sono que me atormenta depois de almoço. Não se tratou de um lauto almoço. Pelo contrário, foi um almoço frugal, mas mesmo assim sou visitado por essa inclinação para fechar os olhos e entrar nesse lugar onde a realidade é trocada pelos sonhos. Para mim, contudo, essa viagem é um desperdício de tempo, pois raramente me lembro dos sonhos ou mesmo que sonhei. Tudo o que é viagem é um desperdício. Lembras-te de estarmos aqui e ali, de termos ido a…? A resposta nem sempre é a mesma. Umas vezes respondo que não, outras que sim, mas na verdade raramente me lembro. Tenho para certas coisas uma memória difusa, uma espécie de nuvem composta por gotas de águas indistinguíveis. Para outras coisas continuo com memória viva. Para sonhos, não tenho memória. Caso me desse à psicanálise, não sei como é que poderia ser levado à interpretação dos sonhos. Se o psicanalista quisesse avançar, teria de recorrer à associação livre e aos actos falhados. Estes não me faltam. Aliás, desconfio que tudo o que faço é um acto falhado. Quero eu dizer que aquilo que faço – esta narrativa, por exemplo – deve o seu insucesso não ao acaso ou à falta de atenção, mas à realização de um desejo inconsciente. O meu inconsciente determina-me a falhar. O sono é um acto falhado. Que bela desculpa o dr. Freud inventou.

domingo, 5 de junho de 2022

Questões de interpretação

Há semanas que não falava com o padre Lodovico. Ligou-me esta manhã para me dizer que iria uns dias para o Baleal, para a casa de férias que a Companhia lá tem. Se eu quiser dar uma saltada até lá, poderíamos conversar e, porque não, ir jantar a um dos lugares interessantes que existem por essa zona. Combinámos para o próximo fim-de-semana. Depois, contou-me a sua ida a Itália. Ainda lá tenho família, acrescentou. Até tenho sobrinhos bisnetos. Eu sabia, mas tomei a informação como uma novidade. O que me apoquenta não é a morte, disse, mas a incerteza sobre se haverá um futuro para essa geração. Tudo parece tão incerto, como se o sentido com que as coisas foram investidas se estivesse a retirar delas. Olho para as coisas – comentou – e começo a não conseguir compreendê-las. É como se elas fossem apenas simples coisas e nada as envolvesse de uma aura que lhes desse, para o coração e a razão dos homens, significância. Respondi-lhe, rindo, que não era boa ideia ler tantas vezes o Apocalipse. Não brinque com coisas sérias. Às vezes, chego a pensar que aquilo que nos pode acontecer é bem pior do que uma distopia baseada numa interpretação literal do Apocalipse de S. João. O que nos vale – atrevi-me – é que não se devem ler os textos bíblicos de modo literal. Não é verdade, respondeu. Não basta interpretar esses textos de modo figurado ou de modo simbólico. O modo literal é essencial. A literalidade é uma dimensão que nunca deve ser esquecida, acrescentou. Não discuto, respondi, a teologia não é assunto que, como sabe, me interesse, e a hermenêutica é coisa para a qual não tenho inclinação. Ele riu-se e disse que tinha de se preparar para dizer Missa. A cada um as suas ocupações, pensei ao despedir-me. Pareceu-me mais animado do que da última vez que tínhamos falado, ainda abalado com a guerra, depois deste tempo de pandemia.

sábado, 4 de junho de 2022

Contra o papel

Vejo a informação de que ler um livro em formato digital é três vezes menos danoso para o ambiente do que fazê-lo em papel. Há muito que sou um entusiasta dos eReaders. Para vergonha minha, tenho três. As razões para isso – para além do meu desvario – são defensáveis, mas não vou argui-las por aqui. Há pessoas que dizem que livros são em papel, um livro digital não é um livro. É como se no início da imprensa alguém dissesse: livros são em pergaminho. Em papel não são livros. Como tenho prazer em andar com um rolo debaixo do braço e sentir nos dedos a rugosidade e no nariz o odor do pergaminho, só leio livros nesse suporte. Ora, como o pergaminho desapareceu e os livros continuaram, também é expectável que o papel desapareça e os livros continuem. As árvores – e por consequência as florestas – agradecerão comovidas. Há, contudo, razões económicas, para além das ecológicas. Imagine que tem disponíveis todos os clássicos – e não clássicos – que caíram no domínio público. Mesmo os livros que têm direitos de autor são mais baratos em formato digital do que em papel. Depois, há uma outra vantagem. Os livros digitais não necessitam de estantes, nem se empilham no espaço, em caso de falta de estantes. Por fim, uma vantagem não despicienda, quando o proprietário dos livros morrer, os descendentes não têm de se perguntar: o que vamos fazer com estes montes de papel? Toda esta história apologética – se não mesmo catequética – veio na sequência de ter estado a descarregar de um site francês uma série de romances caídos no domínio público. Entre eles estão dois romances italianos de Italo Svevo, La Conscience de Zeno e Senilità, ambos em francês. Por acaso, possuo-os em papel, na tradução portuguesa, mas estou a desaprender a ler em papel.  Por aqui onde estou, está sol, mas a temperatura não ultrapassará os 22 graus. Seria uma óptima tarde de leitura, caso não houvesse uma festa de aniversário. O aniversariante – entrado agora na denominação de septuagenário – merece a festa. Além disso, as minhas netas estão a chegar e quero estar com elas e não com a consciência de Zeno, na sua rocambolesca psicanálise.

sexta-feira, 3 de junho de 2022

Prelúdios e interlúdios

Depois de um dia com alguma agitação, tentei ler alguns artigos de opinião dos jornais de hoje. Começava e, passada meia dúzia de linhas, dava o salto para outro. Talvez a razão estivesse em mim, na minha pouca disponibilidade para ler os outros. Pode acontecer, porém, que a questão estivesse mesmo na opinião. Emitir opinião é um exercício fútil – eu sei do que falo, pois também emito opinião, embora a minha seja emitida paroquialmente – e que, sob a capa de alimentar a esfera pública, não passa de uma diversão com pouco sentido. Em tempo li cronistas com grande entusiasmo, como o Eduardo Prado Coelho ou o Vasco Pulido Valente, mas ambos já morreram. Parece – mas talvez esteja a inventar – que tinham um pelo o outro um ódio de estimação, mas escreviam muito bem. Creio que os artigos de opinião não passam daquilo que os franceses chamam bavardage. Pura tagarelice, mesmo quando – ou principalmente aí – o opinante se esmera na tentativa de convencimento do público sobre a sua douta visão do mundo. Está fresco no sítio onde me encontro neste momento e isso é um bom prelúdio para o fim-de-semana, mas um prelúdio não é uma previsão ou uma profecia. A palavra prelúdio recordou-me uma outra: interlúdio. A televisão da minha infância era um acontecimento notável. Os programas eram interrompidos vezes sem conta por falhas técnicas. Assim que isso acontecia, era exibido um texto que dizia: pedimos desculpa por esta interrupção, o programa segue dentro de momentos. Se os momentos se acumulavam para além do aceitável, tinha-se direito a um interlúdio musical. Naquele tempo, eu adorava futebol. Raramente a televisão transmitia um jogo, a não ser a final da Taça de Portugal e os jogos no estrangeiro das equipas portugueses. Era uma festa, embora muitas vezes em vez do futebol se tivesse direito a longos interlúdios musicais. Imagino, agora, que seriam os prelúdios de Chopin. Vou caminhar. Talvez isso me disponha para ler a opinião dos outros.

quinta-feira, 2 de junho de 2022

Compras

Talvez precise de trocar de carro, pensei. Pus-me a fazer consultas na internet, fui acumulando páginas abertas. Resultado? Fechei-as e acabei por fazer a assinatura da revista Electra. Saiu-me bastante mais barato e dar-me-á muito mais prazer. Tirando o desvario da adolescência e do culto das corridas de automóveis, estes nunca me interessaram. Não gosto, inclusive, de conduzir. Por outro lado, o carro que pensei trocar não faz mais de 2 mil quilómetros por ano. A revista Electra, de que acabei de comprar o número 16, é pertença da Fundação EDP. Apresenta-se do seguinte modo: “Electra é uma revista internacional de crítica e reflexão cultural, social e política, dedicada às diversas áreas da cultura, promovendo diálogos e oscilações de fronteiras entre disciplinas artísticas, saberes humanísticos e ciência, entre teorias e práticas culturais.” Independentemente destas intenções – na verdade, não me comovem – a revista é um belíssimo objecto. Textos e imagens são, por norma, excelentes. O papel é de grande qualidade. Vale bem os 27 euros por quatro números anuais. O número da Primavera deste ano trata da questão da identidade. Tem um diário de Almeida Faria e um portfolio de trabalhos de Jorge Queiroz, além de muitas outras coisas, nas suas mais de 250 páginas. Um dos meus escritores de culto é o austríaco Thomas Bernhard, não tanto pelo seu teatro, que desconheço, mas pela narrativa. Pensava que tinha tudo o que estava publicado em Portugal. Há dias, numa das minhas vagabundagens pelos alfarrabistas online, deparei-me com um título que desconhecia, Betão. Certifiquei-me de que não era uma peça de teatro e comprei-o. Fora publicado em 1990, na excelente colecção Caligrafias, das Edições 70, anos antes de eu ter descoberto o autor e de me ter tornado um seu leitor fiel. Bernhard chegou a viver em Portugal devido à doença pulmonar de que sofria. A Áustria não teria ares amenos para a sua situação. Acabou por morrer cedo, tinha acabado de completar 58 anos. Uma vez recomendei-o a uma amiga brasileira. Odiou. Ela precisava de visões optimistas para certificarem a sua visão optimista do mundo e do futuro. Em Bernhard não há, felizmente, nada disso. Dos autores descobertos já na fase da vida madura, apenas dois me tocaram. Ambos de língua alemão. Bernhard e W. G. Sebald, que também morreu cedo, com 57 anos, num desastre de automóvel. Agora vou ler diário do Almeida Faria, antes que me venham buscar para ir comprar – imagine-se – vinho para uma festa de alguém que se tornou septuagenário. Fiquei responsável por essa incumbência. Ainda gostava de saber a razão.

quarta-feira, 1 de junho de 2022

Das coisas facultativas

Apesar de estar em contínua mudança, o mundo muda menos do que se pensa. Oiço gritos na praceta. Um bando de adolescentes dá pontapés numa bola. Estão entusiasmadíssimos a jogar na rua. Fiquei a olhar para eles e vi-me a mim a fazer exactamente o mesmo, há muitas décadas. Espantam-me apenas os decibéis. Também eu e os meus companheiros de então gritávamos assim? Brincar na rua era, naqueles dias e numa vila provinciana, um exercício democraticamente distribuído. Todos brincavam na rua, a não ser um ou outro infeliz subjugado por uma tirania maternal. Estes que jogam à bola aqui em baixo, porém, são uma elite de felizardos. O que não muda é o entusiasmo dos rapazes atrás de uma bola. Ao reler o texto de ontem lembrei-me que tinha quebrado uma promessa feita a 27 de Maio. Não tornar a olhar para uma página de Eça de Queirós enquanto me lembrasse de que ele preferia, para acompanhar o célebre Bife à Marrare, capilé. Daqui podem-se extrair duas conclusões diferentes. A primeira afirma que este narrador é muito volúvel e muda rapidamente de opinião. A segundo sublinha que o mesmo narrador tem fraca memória. Cada um que escolha a conclusão que mais lhe agradar, havendo a possibilidade, ainda, das duas serem verdadeiras ou das duas serem falsas. Outra coisa em que sou obrigado a mudar de opinião é o cumprimento do horário da consulta pelos médicos. Hoje, fui consultado na hora marcada. O problema é que isto poderá ser apenas uma idiossincrasia daquele médico, um electrofisiologista cardíaco (tradução: electricista do coração), que, descobri, fez o curso enquanto aluno da Academia Militar. Ninguém pode chegar tarde à guerra e isso entranha-se na vida civil. Obrigar a todos os futuros médicos a fazer o curso ao mesmo tempo que frequentam uma academia militar seria um contributo decisivo para a pandemia do atraso com que os facultativos (estive quase a chamar-lhes esculápios) chegam às consultas. Ocorre-me, agora, que talvez por serem facultativos a presença a horas também seja facultativa.