quarta-feira, 20 de julho de 2022

Quantos dias esperar?

Meu Deus, como foi possível eu não dar por isso? E ao não dar por isso, não pude associar-me à comemoração. Um erro imperdoável. Ontem, dia 19 de Julho, comemorou-se o Dia do Aparelho Dental. Devido à minha contumaz distracção, temo que exista um Dia da Omoplata de Platina e eu não saiba. Só espero estar atento para, caso haja um, não perder o Dia do DIU. Não se trata de um dia referente ao território de Diu que fazia parte daquilo a que se chamava a Índia portuguesa. Quando andei na escola primária ainda se estudava como fazendo parte de Portugal Goa, Damão e Diu, apesar de serem já Índia indiana. Estou mesmo a falar do DIU, do dispositivo intra-uterino. Se o aparelho para os dentes tem um dia, por que razão haveria de ser recusado um ao aparelho para o útero, o qual tem uma utilidade incomensuravelmente maior do que dispositivo para os dentes. Se me pedirem uma prova, eu posso oferecer um argumento de autoridade, e que autoridade. Jorge Luís Borges, no seu conto Tlön, Uqbar, Orbis Tertius, escreve: Do fundo remoto do corredor, espreitava-nos um espelho. Descobrimos (a altas horas da noite essa descoberta é inevitável) que os espelhos têm algo de monstruoso. Então Bioy Casares recordou que um dos heresiarcas de Uqbar havia declarado que os espelhos e a cópula eram abomináveis, porque multiplicam o número de homens. Ora, se o DIU não tem o poder de aniquilar os espelhos, tem, no entanto, o poder de permitir que a cópula não implique a consequência abominável da multiplicação dos homens. É verdade que o meu argumento de autoridade arrasta consigo uma polémica teológica, mas, numa sociedade laica, parece-me imbatível. Juro que estarei atento, caso não me esqueça, para todos os dias que decorrem ao longo do ano com as suas inauditas comemorações, até que chegue o do DIU. Da boca ao útero quantos dias se terá de esperar?

terça-feira, 19 de julho de 2022

Burocracia matrimonial

Um homem faz anos e recebe, da sua mulher, como presente de aniversário – do seu quadragésimo sexto aniversário – um livro. Caso esse homem fosse vivo, faria este ano, lá para Dezembro, 106 anos. Sei tudo isso através da dedicatória inserta numa das primeiras páginas de um romance comprado num alfarrabista. Sei também o nome da mulher, mas não a idade que ela teria, caso fosse viva. Também não sei o nome dele. Esta oferta ocorre no ano de 1960 e o que está escrito manifesta o cumprimento de um dever, mas não a presença do travesso deus Eros. Ela usa a expressão Felicito-te pelas tuas 46 primaveras. É quase um comunicado oficial, um exercício proveniente da burocracia matrimonial. Curiosamente, a mulher tem um apelido toponímico (não sei se será dela ou dele) que me chama a atenção. Alguém daquela família nasceu numa vila, de que tomou o nome para apelido, onde terá nascido, também, uma das minhas bisavós. Tento imaginar que casamento será esse, mas pertence a uma geração que me é completamente desconhecida. Imagino que sejam católicos – pois o autor do livro, um romance, é um padre – e que teriam alguns hábitos de leitura, mas não seriam particularmente ricos. Um livro como oferta. O livro está aberto, as folhas foram cortadas até ao fim, indício que foi lido. O autor é irrelevante no panorama da literatura nacional, a sua escolha parece motivada por uma visão ideológica e não por um ilustrado interesse literário. É possível que não tenham sido felizes nem infelizes, mas terão levado o contrato até ao fim. E isso era fundamental naqueles tempos. É provável que tenham tido filhos e netos. Terão sido estes a desfazerem-se dos livros dos avós. Se o não tivessem feito, o livro não me teria chegado hoje às mãos e eu não teria assunto para escrever. 

segunda-feira, 18 de julho de 2022

Animal simbólico

Continuo a ouvir o roncar de helicópteros e aviões, embora mais espaçado do que há dias. Haverá fogo por perto? O mundo nunca cessa de fornecer novos sinais para denotar novas realidades. Até há uns anos, ninguém associaria o ruído de um helicóptero ou de um avião a um fogo. Emergência médica ou treino militar, estas eram as realidades em que se pensava, por aqui, ao ouvir aqueles ruídos. Agora, foram re-semantizados. Somos animais simbólicos, mas não seremos os únicos. Aquilo que vemos, ouvimos, saboreamos, cheiramos, tacteamos, tudo isso se transforma em símbolo de outra coisa. O mundo – o que chamamos mundo – não é mais do que um conjunto de símbolos, o que está para além desses símbolos não fazemos a menor ideia. Quando associo um ruído a um helicóptero estou a associar não um símbolo a uma realidade, mas um símbolo a outro. Deveria evitar estas reflexões. Podem arrastar controvérsia e eu, um pobre narrador perdido num marmoto de símbolos, não tenho qualquer apetência para esses jogos florais, em que as pessoas terçam argumentos para salvar a honra da sua dama. Não tenho dama para me bater, pois não creio nas minhas crenças. Também não deveria escrever proposições como não creio nas minhas crenças. Hoje acordei com um espírito céptico. Amanhã, caso exista um amanhã, poderei acordar com um espírito dogmático. Que diferença há entre a dúvida e o dogma, se ambos começam por um simples dê? Na minha mente vivem diversos homúnculos. Um deles, talvez uma homúncula, diz-me: achas que alguém quer ler a verborreia que derramas no monitor? Contemplo-a demoradamente, depois encolho os ombros e ponho um ponto final no texto.

domingo, 17 de julho de 2022

Blasfémias

Acabei de chegar da minha caminhada, foi o que respondi à pergunta então, o que tem feito?, que o padre Lodo disparou mal atendi o telemóvel. E prossegui, olhe já hoje obtive 55 pontos cardio. O que é isso?, perguntou-me ele a rir. O que é não faço a mínima ideia, mas a OMS assegura que obter 150 pontos cardio por semana, ajuda a prolongar a vida. Depois, de um breve silêncio disse-lhe: sabe, padre Lodo, a ordem das coisas não está lá muito bem feita. Porquê? Repare que deveríamos ter livre-arbítrio, poder escolher, respondi. E não temos? Está a blasfemar? Considere, padre, o seguinte. Se alcançar 150 pontos cardio por semana contribui para um aumento dos anos de vida, imagine agora se nos tivesse sido dada a possibilidade de obter um número infinito de pontos cardio por semana. Tornar-nos-íamos eternos. Ele emitiu uns sons que, ao telemóvel, não consegui descodificar. Continuei: só nos foi dado obter um número finito de pontos cardio por semana. Logo, não podemos escolher entre a possibilidade de ter uma vida finita ou uma vida sem fim. É capaz de me dizer onde está o livre-arbítrio? Nesta altura, começou a falar em italiano, como se estivesse a empregar o calão mais rasteiro em uso numa das grandes cidades do país onde nasceu. Sabe, acabou por dizer, eu sou um velho e, além disso, um Settembrini e tenho nos meus antepassados um número suficiente de blasfemadores para levar a sério o que está a dizer. Eu ri-me e disse-lhe que ia ter todos os meus netos comigo, que seria uma boa ideia ele vir visitar-nos. E jurei que não ensinaria às crianças qualquer blasfémia que me ocorra. Ele, claro, aceitou.

sábado, 16 de julho de 2022

Rememorações

Deixo escorrer devagar este sábado, sem saber o que fazer nele, sem saber o que fazer dele. Foi para esta ignorância que me levantei pouco passava das sete da manhã. De então para cá vivo subjugado à questão o que fazer? A praia está-me interdita por uma incompatibilidade entre mim e ela. Das coisas que tenho para fazer, nenhuma delas me toma a vontade para que a execute. Há pouco adormeci sentado, depois acordei e, sem saber a razão, lembrei-me dos meses de Setembro de há mais, bem mais, de cinquenta anos, quando ia para a aldeia e, nas primeiras noites, o adormecer era ameaçado pelos barulhos exteriores, os quais me eram desconhecidos, nunca sabendo de que terríveis ameaças eram arautos. Depois, o hábito tornava-os inofensivos e, por aquele ano, convivia pacificado com eles, para se transformarem, de novo, em prenúncio do mal no ano seguinte. Mais tarde, não muito, tornaram-se triviais e do que é trivial não temos receio. As férias escolares de Verão ocupavam um quarto do ano civil e os dias tinham horas bem mais longas que as actuais. Quando chegavam, pensava que diante de mim se abria a eternidade e que havia tempo para tudo. Não havia, mas o tudo que se imaginava então era muito mais exíguo que o tudo que conhecemos hoje. Na verdade, fazia com esse tempo aquilo que faço com este sábado. Deixava-o escorrer, até que se esgotasse e viesse o mês de Outubro com os seus imperativos e uma ordem que me desordenava a existência. Hoje, Julho dobrou o cume e encontra-se já a deslizar para o abismo, onde Agosto o espera com a espada que o há-de assassinar.

sexta-feira, 15 de julho de 2022

Da galância

Leio, numa novela de Vasco Graça Moura, a expressão seu amigo e companheiro de aventuras galantes em Paris. Claro, uma aventura galante só poderia ter por espaço a capital francesa. Noutros locais, qualquer aventura amorosa não passa de uma aventura amorosa. Falta-lhe sempre a galância, propriedade apenas existente num ponto muito específico da Gália. Agora, fosse eu um pensador da linguagem, poderia discorrer entre a aproximação gráfica de Gália e de galante, inventar-lhes uma raiz comum e construir uma teoria que não seria pior que muitas outras que existem. Poupo-me, todavia, ao incómodo. Sempre que escuto ou leio a expressão aventura galante tenho a clara impressão de estar perante um eufemismo, uma estratégia retórica que tende a suavizar, através de uma expressão agradável na sua sonoridade, algo que talvez seja menos heróico e mais grosseiro do que se supõe. A necessidade de cobrir desse modo as incursões sexuais é o sintoma de uma má consciência. Não deixa de ser enigmático o modo como essa má-consciência se formou, apesar de haver múltiplas explicações para o acontecimento. A natureza – para falar ao modo Iluminista – colou à sexualidade um interesse tão vivo, que este se tornou num entusiasmo tal que se deverá ter sentido a necessidade de refrear tamanha exaltação. Foi então indispensável passar à gestão do entusiasmo, o que obrigou a duras manobras linguísticas, como enquadramento de outro tipo de legislação moral e mesmo jurídica. Pode-se imaginar que esse entusiasmo pudesse conter uma ameaça mortal para a própria espécie, que a fonte genesíaca da vida fosse, desregulada, fonte da morte. O velho par Eros e Thánatos, as figuras mitológicas que tanto assediaram a consciência do dr. Freud. É possível que por detrás da expressão aventuras galantes se esconda o terrível medo da morte. Como acontece amiúde às sextas-feiras, a inclinação para pensar de forma idiota coisas parvas é mais forte do que eu. Ainda hei-de, um dia destes, falar na palavra amiúde.

quinta-feira, 14 de julho de 2022

A última valsa

Talvez por ser um ser de ficção, um mero narrador, o mais das vezes sem narrativa, aquilo que o 14 de Juillet me faz de imediato lembrar não é a tomada da Bastilha, uma espécie de pontapé de saída para a Revolução Francesa, mas uma fotografia de Robert Doisneau com o título La dernière valse du 14 de Juillet, 1949. Nela, um par dança solitário num recanto de Paris, imagino, enquanto a noite se apodera da cidade. Homem e mulher rodopiam no enlevo do seu próprio movimento, talvez numa paixão de súbito incendiada, indiferentes à solidão que os cerca. É verdade que as festas de 14 de Julho são comemorações dessa tomada da Bastilha, mas é possível que um facto da minha existência se prenda a essa fotografia. Não se imagine – e não há nada mais fácil do que deixar a imaginação à solta – que também eu dancei num 14 de Juillet. Uma impossibilidade, mas as fotografias, quadros ou poemas podem ligar-se a nós – ou nós a eles – por motivos muitos diferentes de uma analogia ou de uma imitação. O Word está a irritar-me. Escrevi mais acima um par dança, e ele insiste em sublinhar a expressão com dois traços azuis e a sugerir alteração para uma par dança. Talvez par tenha mudado de género e eu não tenha sido informado. São coisas que acontecem, talvez com mais regularidade do que se pensa. Também é possível que o Word ainda não saiba distinguir entre nome e adjectivo. Continuo muralhado em casa. O inimigo não descansa e dardeja calor como se quisesse abrasar o mundo, que por si já anda abrasado. Fecho os olhos, vejo o par de Doisneu a rodopiar, a saia da rapariga a flutuar e espero que uma frente fria se abata não sobre Paris, mas sobre este pobre país submerso numa onda gigante de calor, para que também ele tenha a possibilidade de dançar uma última valsa antes do fogo acabar com ele. Retornou aquela minha propensão para a hipérbole.

quarta-feira, 13 de julho de 2022

Dente de ouro

Tinha um dente de ouro, juro que tinha. Não seria muito alto, mas era largo de ombros e dono de uma voz cheia. Vendia qualquer coisa. Pão. Sim, era padeiro. Tinha uma padaria e uma mercearia anexa. Distribuía o pão, que cozia num forno próprio, pela aldeia e outros lugarejos limítrofes. Quando na distribuição do pão, era jovial para com as clientes. Falava alto e convicto, mas aquilo de que me recordo bem é o dente de ouro. Na mesma aldeia, havia outro homem com dente de ouro, mas já não me lembro do que fazia. Talvez fosse demasiado velho para fazer alguma coisa. Tinha umas laranjas raiadas de vermelho resultado de uma enxertia de laranjeira em romãzeira ou vice-versa. Isto pensava eu. Ele era vizinho de uma tia minha e, por vezes, oferecia aquelas laranjas tracejadas de sangue. Afinal, descobri muitas décadas depois, isso é um mito. Não há enxertia possível entre laranjeira e romãzeira. É assim que se destrói a infância. Seja como for, também o dono daquelas laranjeiras sanguíneas tinha um dente de ouro, mas não tinha a voz poderosa do outro, nem fazia pão. Parecia cansado, ele e a mulher. O padeiro distribuía o pão num carro. Parava, buzinava e as freguesas aproximavam-se. Então ele falava alto e mostrava o dente de ouro. Depois, metia-se no carro e ia buzinar para outro lado. Havia também um sardinheiro. Vendia peixe, mas não tinha carro nem dente de ouro. Tinha uma carroça. Dentro dela havia caixas de madeira cheias de gelo e peixe. Julgo que tinha uma corneta com a qual se fazia anunciar. A carroça era puxada por um burro ou por uma mula, e o sardinheiro parecia-me muito velho, com a barba sempre por fazer. Talvez tivesse medo dele. O resto era fornecido pelas mercearias. Umas tinham padaria; outras, taberna. Tanto quanto sei, quem tinha dente de ouro não ia à taberna, talvez com medo de o perder por lá nalguma batalha de cartas ou de dominó. Não, nas tabernas não se jogava dominó, esse era jogado no café, pois também havia um café. Eram gloriosos esses tempos em que havia homens com dentes de ouro e as laranjeiras eram enxertadas nas romãzeiras.

terça-feira, 12 de julho de 2022

Enlouquecer

As pessoas enlouquecem com este calor. Não com uma loucura branda e complacente, mas com um desvario furioso. Grandes homicídios podem ocorrer durante as vagas de calor, traições sem fim, onde maridos e mulheres, até então fiéis, se traem entontecidos, violências inesperadas surgem quando as temperaturas sobem sem benevolência. Cansados com a prosápia dos humanos, os deuses vingam-se e enviam-lhe altas temperaturas para os cozerem no vapor que desce dos céus ou sobe da terra. Gostaria de escrever sobre outra coisa, mas a temperatura obnubila-me tanto a memória como a imaginação. A casa ainda é um oásis. A rua não é uma visão do purgatório, mas a sensação do inferno. O calor abafado, sob um céu nublado. Bebo água e tento pensar em alguma coisa que mereça ser pensado, mas não encontro. Sinto o cérebro tomado por uma grande lassidão, os olhos a arder – devias pôr pingos nos olhos, oiço dizer –, a vida a desenrolar-se em câmara lenta. Ao fundo, o barulho mecânico dos carros e talvez de aviões esconde a loucura que se abate sobre cada um dos mortais. Um cão ladra, mas não há naqueles latidos qualquer convicção. Também foi dobrado pela malevolência da temperatura. Não me ocorre nada para contar.

segunda-feira, 11 de julho de 2022

Amnésia

Há um poema de Herberto Helder que começa assim: Pequenas estrelas que mudam de cor, frias / pêras ao alto / de raízes queimadas, ainda doces, profundamente / cor de turquesa – eu sei tudo. Afinal não sou só eu, pensei. Há mais gente que sabe tudo. O meu problema é que sofro de amnésia e não há coisa melhor, para quem sabe tudo, do que sofrer de amnésia. Um dia, um padre disse-me em tom jovial: sei tudo dos meus paroquianos, até as vezes que… Nesse instante, suspendeu a voz e deixou as reticências pairar sobre a conversa. Depois, recompôs-se e acrescentou o que me vale, perante tal sabedoria, é esquecer-me com facilidade. Há muito que sofro de amnésia, a princípio julguei ser um drama, agora sei que é uma bênção, mesmo quando esqueço um encontro, a hora de uma missa, uma reunião. Também uma médica conhecida me falou sobre a bondade da amnésia, não suportaria andar com os dramas pessoais dos meus pacientes dentro de mim, esqueço e isso permite-me viver. Ao nascermos, trazemos uma sabedoria infinita, como relembrou o velho Platão. Para que possamos viver, é necessário esquecer, sofrer de amnésia, cultivar o olvido e fomentar o oblívio. Eu sei tudo diz o poeta. Todos nós sabemos tudo, mas esquecemos, para afastar para bem longe a sombra da morte. Platão sabia-o bem, pois a filosofia era, ao mesmo tempo, uma tarefa de reminiscência e uma aprendizagem a morrer e a estar morto.

domingo, 10 de julho de 2022

Judeus portugueses

As coisas que se descobrem quando não se tem assunto para escrever. Toda a gente que tem um interesse mínimo por pintura já ouviu o nome de Camille Pissarro, um dos fundadores do impressionismo. Até aqui não há qualquer novidade. Ora, o pintor era filho de um judeu português de Trás-os-Montes, que fora para Bordéus com os pais, certamente para fugir à benevolência da Santa Inquisição. Duas das grandes figuras da cultura europeia – o pintor Camille Pissarro e o filósofo Baruch Espinosa – têm as suas origens em Portugal. As famílias de ambos não simpatizavam particularmente com a Inquisição e achavam deplorável a perseguição de judeus e foram-se embora. Outra figura eminente da cultura europeia, no campo da economia, é o britânico David Ricardo, também com origens sefarditas portuguesas. É possível, caso não existissem as benevolentes perseguições em nome da religião e do amor ao próximo, e as famílias tivessem por cá ficado, que essas pessoas não chegassem a ser o que foram. Também é possível que o país em que vivemos fosse hoje muito diferente. Para melhor. É possível que exista, mas eu não conheço. Refiro-me ao levantamento sistemático daqueles judeus sefarditas portugueses – ou dos seus descendentes – expulsos de Portugal e que se tornaram, nas diversas áreas, figuras fundamentais da cultura europeia. Ter a dimensão da perda talvez sirva de lição, embora eu tenha fundadas dúvidas sobre a capacidade de a humanidade aprender com os erros. Talvez a espécie humana seja já – em termos biológicos – demasiado velha, e burro velho não aprende lição. Outra hipótese é ser demasiado nova e o seu desenvolvimento cognitivo ainda não lhe permitir compreender estas lições. Vou ver se descubro alguma maneira eficiente de descansar neste domingo.

sábado, 9 de julho de 2022

Ondas

Uma onda de calor. Não bastava o calor, ainda tinha de vir em onda, por certo análoga àquelas ondas gigantes da Nazaré que parecem levantar-se para submergir este pobre país. Como há surfistas para essas ondas nazarenas, também, imagino, os haverá – que nome lhes dar? – para as ondas gigantes de calor. Por mim, um mero narrador sem narrativa, dispenso as duas. Tenho dias em que sigo uma filosofia portuguesa que se resume na máxima o melhor é não fazer ondas. Um dia por outro, contudo, gosto de provocar alguma ondulação, talvez uma manifestação saudosa dos tempos em que achava que a vida era provocar ondulações e que os seres humanos deveriam ser todos surfistas dessas ondas existenciais. Coisas da pós-adolescência e primeira juventude. Há quem fique assim até que a morte o leve. Acontece mais aos homens do que às mulheres, mais sensatas e pragmáticas. Os homens – refiro-me aos machos da espécie – têm mais propensão do que as mulheres para permanecerem eternas crianças. Consta que também os gregos da antiguidade clássica eram tidos, pelos egípcios, como eternas crianças, se for verdade o que um certo Aristocles – alcunhado de Platão – contou. Como em tudo, também sobre o nome de Platão há larga controvérsia. Uns acham que era alcunha, outros, nome verdadeiro, e que em Atenas existia mais gente com o nome de Platão. O filósofo – para dizer a verdade, talvez o único filósofo que jamais houve ao cimo da Terra – tinha uma certa tendência não tanto para o surf, mas para fazer ondas. Tantas fez que o seu nome e até os seus escritos chegaram até hoje, aproveitando as marés. O que me intriga é não saber como se relacionava ele com as ondas de calor, pois não consta que tenha vindo à Nazaré ver as ondas gigantes. Chamo a atenção para que o facto de não constar que tenha vindo não é prova suficiente que o não tenha feito. Sábado e calor perturbam-me os raros neurónios que tenho em funcionamento. Também o aparelho neuronal tem serviços mínimos, quando há greve.

sexta-feira, 8 de julho de 2022

Alentejo

Diante de mim, um guia do Alentejo. É um belo livro, não tanto pelo que diz, mas por aquilo que mostra. Como todos os guias, este traz os sítios onde dormir, comer e que coisas se devem visitar. Como já passaram 15 anos depois da sua publicação, muitas dessas informações serão irrelevantes. Outros guias teriam ido para reciclagem, mas este foi-se conservando, não porque servisse de informação para uma visita ao Alentejo, mas pelas suas fotografias. Têm dentro delas um sentimento de diferença. Uma rua de Estremoz recorda-me uma outra onde, na mesma cidade, vivi durante um ano. Era um mundo onde as coisas não apenas se passavam mais devagar, mas de um outro modo, como se tudo fosse aí mais sério e mais decisivo. Ora, não se devem tratar as coisas sérias e decisivas de forma rápida e leviana, como aprendi na primeira loja em que entrei. Naqueles dias ainda não havia, província fora, a febre das grandes superfícies. Todas as coisas sérias e decisivas precisam de demora, de lentidão, de repousado vagar. Fiquei a gostar do Alentejo, embora nunca faria o que um amigo meu fez há uns anos. Trocou o lugar onde vivia por uma pequena aldeia alentejana. A última vez que o vi, pareceu-me reconciliado com a existência. Eu não preciso de me reconciliar com a existência ou, então, não quero fazê-lo. Qual destas proposições será verdadeira? Não faço ideia. Deveria ir ao Alentejo, lá para os finais do Outono.

quinta-feira, 7 de julho de 2022

Memórias

A primeira semana de Julho está concluída. O calor instalou-se sem piedade. Até ao fim-de-semana que vem estão previstas temperaturas sempre na casa dos 40 graus, havendo dois dias que chegarão aos quarenta e quatro. Nestas alturas, os neurónios entregam-se a sinapses vagarosas e entediadas. Tudo na minha mente se processa como se fosse um filme em câmara lenta. Ainda mais lenta do que habitualmente, alguém mo recordará. É verdade que não tenho neurónios de piloto de Fórmula 1. Tenho estado a ouvir um CD do pianista de Jazz Marc Copland. Há muitas anos, assisti a um concerto dele, de que gostei bastante. Os anos passaram e esqueci o nome. Queria reavê-lo, mas a memória não cooperava. Sabia que havia um compositor de música erudita com o mesmo apelido – Aaron Copland – mas trocava-o sempre por um outro e a procura era sempre baldada. Encontrava um músico de Jazz, mas não um pianista. Antes um saxofonista. Há uns tempos, porém, fez-se luz e através de Aaron Copland cheguei a Marc Copland. Qual o preço disto? Como se sabe, tudo tem um preço ou, como se usa no calão político, não há almoços grátis. O preço foi esquecer o nome do saxofonista e do compositor erudito que tinha um apelido igual. Não há coisa em que os homens mais confiem do que na sua memória e não há faculdade mais frágil do que essa mesma memória. Presumo que no dia em que me lembrar daqueles que agora esqueci, um outro esquecimento encontrará ocasião para se manifestar. O esquecimento é a manifestação pela não manifestação. Não tarda, terei de sair e enfrentar o dragão do calor. Fora eu S. Jorge, e haveria de o trespassar com uma lança verrumante e impiedosa, mas não o sou.

quarta-feira, 6 de julho de 2022

Uma sesta

Em dias como o de hoje, com um calor proibitivo, tenho não apenas compreensão, mas uma súbita inveja da tradição espanhola da sesta. Há nela toda uma sabedoria que, nem sei bem por que razão, não passou a fronteira para o lado de cá. Claro que há pessoas que se dedicam a essa actividade no pós-almoço, mas isso não significa a existência de uma tradição. Com tudo isto, quero dizer que estou a cair de sono. Resisto, como um herói em tempo de guerra, pois tenho coisas para fazer, mas o mais sensato seria protelar e dormir. Num livro recebido ontem, logo no segundo parágrafo, dou com a seguinte prosa: Uma nebrina espessa, veloz que nem caruje de Inverno, descera dos cabeços, enovelara-se nos pinhais e rondava já nas ourelas da várzea que à raiz dos montes ia alargando, vale em fora, verdinha de pomares, uveiras altas e milheirais ramalhudos, luzidios de viços. Posto que se não measse inda Setembro, turvara-se o tempo após uns dias trovejados. O ar transpirava relentos mornos, pesavam abafuras enervantes, e por trás da barragem das névoas, bojavam, ameaçando subir e descondensar-se, negras carregações de nuvens, grossas como odres repletos. O texto pertence a um romancista quase desconhecido, Manuel Ribeiro, e ao romance Vínculos Eternos, publicado em 1929. O autor não pertencia a elite social do seu tempo. Nunca o li e não sei ajuizar se o seu esquecimento é justo ou injusto, mas pela amostra há uma coisa certa. Teria um belo poder descritivo. Quase se vê a paisagem que descreve. Isto não é pequena virtude. Manuel Ribeiro tem uma história de vida curiosa, mas que, por hoje, omito, para que se possa ficar com a nebrina e o caruje de Inverno, o measse inda Setembro e os dias trovejados, as barragens de névoas e as nuvens, grossas como odres repletos. Nada disto diz alguma coisa a um citadino, mesmo aos que pertencem àquelas cidades que não passam de pequenas vilas. Há ali uma funda experiência da terra e dos campos, nesses campos em que talvez ainda seja possível dormir uma sesta.

terça-feira, 5 de julho de 2022

Ler legendas

Chego a casa e vejo as minhas netas deitadas no sofá, de olhos postos naqueles dispositivos que parecem ser o horizonte dos adolescentes. O que fizeram, pergunto. A mais velha, ergue o indicador e o médio de cada mão num V – de vitória, presumo – e responde: nada! Decido, desgraçadamente, ter uma atitude pedagógica e informo que o avô na idade delas, em tardes assim, onde não dá para sair de casa, lia e lia. Também lemos, avô. Depois de fazer um silêncio, acrescenta: as legendas. Ri-me e pensei que mais vale ler as legendas de séries e filmes do que só verem coisas dobradas. Lá chegaremos. Perguntei-lhe, à mais velha, se já tinha lido a Alice no País das Maravilhas. Já vi ou filme, respondeu. E que tal ler o livro? É um bocado infantil, avô. Optei pelo silêncio. Tomei consciência de que está a ser reeditada a obra discográfica de José Afonso. Pus-me a ouvir os primeiros álbuns, aqueles de que mais gosto, os que vão de uma combinação da tradição popular com a poesia erudita do início da nacionalidade até ao mais surrealista de todos, Venham Mais Cinco. Há muita gente que resume José Afonso a cantor de intervenção. Ele foi-o, claro, mas a sua música e muita da poesia que seleccionou para cantar estão muito para além disso. Quando penso na música que traduz o espírito de Portugal, seja lá isso o que for, penso sempre em José Afonso e Carlos Paredes. Então a Amália ou os Madredeus? Sim, cada um a seu modo, são uma representação do espírito português, mas há qualquer coisa indefinível dessa portugalidade que só encontro na música de José Afonso, nos primeiros álbuns, e na de Carlos Paredes. E isso nada tem a ver com a política. Agora, volto para a tarefa que tenho entre mãos, literalmente. Não sei como me meti nisso, mas hoje tenho um trabalho manual para realizar. Não vai correr bem. Talvez mais valesse ir ler legendas.

segunda-feira, 4 de julho de 2022

Efemérides

Por vezes, quando não me ocorre nada para escrever ou não tenho um desses acontecimentos do quotidiano que se inscrevem numa verdadeira gesta, consulto um certo blogue que escreve longos, informativos e ajuizados textos sobre as efemérides do dia. Hoje, quatro de Julho, é bastante rico, a começar com o dia da independência dos Estados Unidos, passando pela tomada de Jerusalém por Saladino, pela morte da Rainha Santa Isabel, de Portugal, pelo nascimento de Giuseppe Garibaldi. Não nego que todos esses eventos sejam importantes, aqui ou ali. Contudo, não poderia deixar de registar que foi a 4 de Julho de 1865 que foi publicado Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carrol. Suspeito, porém, que apesar do meu entusiasmo, não conseguirei convencer as minhas netas a lê-lo. Bem me poderia levantar e ir propor-lhes a aventura, mas temo que, deitadas no sofá, entretidas com os gadgets que invadiram a existência dos mortais, me olhem como se eu fosse um extraterrestre. Outro acontecimento digno de nota passou-se também a 4 de Julho, mas de 1811, o nascimento de Antónia Adelaide Ferreira, a Ferreirinha, essa mulher que traçou novos caminhos para o vinho em Portugal. Não declarou nenhuma independência, não transformou pão em rosas, não unificou um país, não conquistou nenhuma cidade, nem escreveu um livro, mas abriu caminho para que muitos encontrem um secreto prazer nesse produto que só gente civilizada pode compreender e amar, o vinho. Lembro-me, embora com pouca precisão, de que há um poema romano, presumo, traduzido por Jorge de Sena (disto, estou certo) em que o poeta afirma, com inteira razão, que o vinho é de gente civilizada e a cerveja, de gente bárbara. A Ferreirinha contribui para o crescimento da civilização por estes lados. O dia, por aqui, nasceu fresco e nublado, mas está a desnublar-se e promete chegar aos trinta e três graus. Há uma coisa que me está a irritar. Tenho ali o romance Lusitânia, de Almeida Faria. Isolado. Comprei-o há dias, via internet, num alfarrabista. Está pejado de furinhos, que não impedem a leitura, mas anunciam a traça do papel. Vou ter de o deitar fora, mas ainda não ganhei coragem. Tem boa aparência, mas quem vê caras, não vê corações.

domingo, 3 de julho de 2022

Inércias e domingos

Como eu sabia, o compromisso de ontem foi agradável. O problema é que me obrigou a fazer uma deslocação – aliás, pequena – que me retirou do estado de espírito em que me encontrava e que era marcado, fisicamente (sic), por não fazer rigorosamente nada. Estando em estado de repouso, o corpo pedia-me que assim ficasse. Tendo-me posto em movimento, logo o mesmo corpo pediu que assim permanecesse. Além de ser muito volúvel, ele sofre de inércia. Sublinho que é o corpo e não eu. A palavra inércia, para além das aplicações conceptuais em Física, tem múltiplos sentidos. Um deles é o de resistência passiva à inovação. Esta significação deve ter sido dada pelos adeptos furiosos da inovação. As pessoas que resistem à inovação permanecem num estado de repouso que é a tradição. Contudo, se esses hooligans inovadores tivessem compreendido o conceito físico de inércia, descobririam que também eles sofrem de inércia, já que não conseguem alterar o estado de movimento em que se encontram constantemente, sempre a deslocar-se daqui para ali, pois é sempre ali que se encontra o novo. Deveria proibir-me de escrever coisas destas ao domingo, embora os domingos de hoje já não sejam como os de outrora, em que as pessoas se endomingavam para ir à missa, as que iam, e as outras porque, irmanadas num espírito igualitário, partiam do princípio de que se uns se endomingavam, também os outros se deveriam endomingar. Agora ninguém se endominga e poucos vão à missa. Toda a gente quer dar o ar mais displicente possível, para que os outros imaginem que eles são pessoas do mundo, gente cosmopolita que não tergiversa perante os dias de descansos. Agora, tenho de ir saber a que horas chega o meu neto, que não se preocupa com inércias nem domingos. Por enquanto.

sábado, 2 de julho de 2022

Pagar a dízima

Acabaram de me perguntar o que eram sezões. Respondi são febres. Há palavras que abandonam o quotidiano das pessoas e que ficam presas no tempo, a dormitar na literatura. Hoje em dia ninguém sofre de sezões e cada vez se sofrerá menos de febres. Estas são sintomas e não doenças. Com o aumento da escolaridade, a linguagem médica penetra no senso comum e as pessoas designam as doenças pelos seus nomes. Parece que a vida da linguagem aponta para, a cada dia que passa, uma maior especialização e um aumento da capacidade de dizer a realidade, caso esta possa ser dita. Hoje já fiz a minha caminhada de seis quilómetros, em que um quinto – estou de uma grande precisão – é feita dentro do mar, percorrendo para um lado e para o outro os seiscentos metros de um molhe. Isto é uma suspensão da realidade. Uma temperatura que não passa os 21 graus. Amanhã, retornarei a esse lugar para onde se prevêem, daqui a dias, quarenta e dois. Quando se diz que o deserto avança, imagino que seja a isto que se estão a referir. Com a aproximação das férias, nasce a preocupação com a literatura adequada a essa queda na fantasia. Pensei que não seria mau ler as aventuras de Arsène Lupin, de Maurice Leblanc, ou as de Fantômas, de Pierre Souvestre e Marcel Allain, uma literatura com que entretive algumas horas da adolescência. Não seria má ideia voltar a ler Georges Simenon, tanto os policiais de Maigret, como os outros romances. Simenon era um óptimo escritor. Talvez fosse melhor dar alguma atenção a Walter Scott e a Victor Hugo. Nada de coisas sérias. Também há coisas pouco sérias que me aborrecem. Estou a ler um romance – cujo autor omito – que, por vezes, me aborrece. As personagens são tão cultas e tão cheias de dilemas morais que, confesso, não consigo suspender a descrença, tal como ordena o imperativo de Coleridge. Os problemas que lá encontro são os do autor e não os das personagens. Há autor a mais e personagens a menos. Logo à tarde tenho um compromisso, que eu trocava de bom grado por ficar a preguiçar longamente. A realidade, porém, é o que é e há que lhe pagar a dízima.

sexta-feira, 1 de julho de 2022

Uma estranha nostalgia

Envelhecer não significa apenas que o tempo de vida encolhe e a morte se torna cada vez mais iminente. Ao encolhimento do tempo de vida corresponde um outro encolhimento, o dos interesses. Durante toda a minha vida fui um consumidor de jornais. Um diário e múltiplos semanários. Há anos que acabei com a compra de jornais em papel, tendo acumulado três assinaturas digitais. Hoje, assino apenas um diário. Será que o leio? Comecei a explorar as minhas fidelidades e tomai consciência de que há muito só sou fiel a dois articulistas. Eram três, mas um morreu há dois anos. Mantenho a minha assinatura apenas para ler um artigo às sextas-feiras e outro ao sábado. Por vezes, leio um ou outro artigo de outros autores, mas sem fidelidade. Notícias, nunca as leio no jornal que assino. Elas estão de tal maneira disponíveis que se tornaram dispensáveis na imprensa. Imaginemos que um ministro troca as mãos pelos pés. Essa miraculosa operação é anunciada por tudo o que é sítio, não vale a pena ir ao jornal ler. Há uma coisa, porém, que faz falta em Portugal. Uma imprensa que tenha artigos que não sejam nem textos académicos, nem artigos de opinião. Esse meio termo existe em alguma imprensa internacional de qualidade, mas não entre nós. São pequenos ensaios que ajudam o público a entender a realidade. Por cá, o que interessa a quem escreve opinião é a espuma do dia, os terríveis dramas de que ninguém se lembrará daqui a meia dúzia de meses. Não faço ideia por que razão escrevi sobre isto. Terei sido assaltado pelas saudades de um tempo em que ainda se acreditava na frase de Hegel: a leitura dos jornais é a oração matinal do homem moderno. Talvez tenha deixado de ser um homem moderno e sofra, por isso, de uma estranha nostalgia.