quarta-feira, 31 de julho de 2024

Preocupação

Estou quase preocupado comigo. Imagino que seja um efeito estival, mas dei por mim a comprar livros de ficção científica. Isaac Azimov, Robert Heinlein, Philip Dick, Ursula Le Guin, Frank Herbert, Ray Bradbury. O ano passado, por esta altura, comprei e li uma série de aventuras de Arsène Lupin, da autoria de Maurice Leblanc. Passado o tempo quente, e ainda durante ele, voltei à literatura não adjectivada e a outras leituras mais sérias. A minha preocupação centra-se na interpretação destas inclinações. Será que estou a regredir e não tardará estarei a ler a Enid Blyton? Depois, serão as aventuras, em banda desenhada, de Texas Jack e do Major Alvega, para descer, de seguida, às adaptações infantis das aventuras do Pinóquio? É evidente que, para me proteger de mim mesmo, tenho na secretária, bem à minha vista, a Teoría de la Constitución, de Carl Schmitt, e os Discursos à Nação Alemã, de Johann Gottlieb Fichte. Mais de um século separam estas obras, mas não será inútil para compreender muito do que se passa neste mundo – e talvez fora dele, quem sabe – dar alguma atenção aos autores e a estas obras, em particular. Se, por vezes, a coisa se mostrar um pouco árida, abre-se um romance de ficção científica, deixa-se este mundo, e entra-se noutros mundos possíveis, piores do que este, por certo, mas que nos aliviam do peso que este tem em si.

terça-feira, 30 de julho de 2024

Uma doença nos olhos

Uma senhora milanesa escrevia – por certo, desesperada – a 28 de Setembro de 1938, numa carta a Benito Mussolini, o seguinte: É impossível que uma mente divina, sobrenatural, como a vossa não consiga encontrar uma solução pacífica para o desentendimento. A segunda grande guerra estava à porta e a aflição explica a hipérbole na consideração da mente do Duce. Há, ainda uma outra coisa. A pobre senhora não percebia que quando alguém, num lugar de poder, julga que possui uma mente divina, sobrenatural, então os homens podem esperar o pior. E o pior é a guerra. O homem comum que reconhece as suas limitações, quando está no poder é prudente. Contudo, outro homem comum, mas sem sentido das suas limitações, perde a prudência e alimentado pela húbris arrasta os outros para o inferno. São inúmeras as cartas de mulheres que, naquele Setembro de 1938, incensando o ditador italiano, pedem com ardor maternal que ele salve o país da guerra. Elas não percebiam que estavam a pedir ao diabo para acabar com o inferno. Isso acontece não poucas vezes na vida dos homens e não apenas em assuntos ligados ao poder. Quantas vezes as vítimas vêem no algoz um salvador? Que doença distorcerá o olhar dos seres humanos para que tão mal saibam julgar aquilo com que lidam? E isto não é uma questão de educação, de acréscimo no ciclo de estudos ou de colecção de diplomas. Talvez seja um problema de oftalmologia, uma doença nos olhos. À falta de melhor, esta parece uma boa explicação.

segunda-feira, 29 de julho de 2024

Contra a realidade

Está uma segunda-feira de sonolência, tecida no nublado dos céus e no calor que teima em descer sobre a Terra, sem que o vento decida intervir para restabelecer a temperatura. O ideal seria uma tempestade. Chuva abundante, raios e coriscos, mas a realidade nunca está pelos ajustes e as excepcionais ideias que me ocorrem são desperdiçadas, sem sequer existir uma explicação. Por isto se percebe que a realidade não pertence a um tempo em que o espírito crítico reina. Está, essa realidade, em desacordo com as minhas ideias? Muito bem, mas tem a obrigação de dizer as razões desse desacordo. A realidade tem uma índole inclinada para o absolutismo. Ignora essa coisa de dar explicações, como se fosse uma rainha absoluta, que aliasse a uma beleza imaculada a frieza do mais insensível dos entes que povoam este universo. Faz o que quer porque pode e o poder é a única explicação para as suas decisões. Muito bem andaria essa realidade que se nega, sem explicação, em realizar as minhas mais elevadas cogitações em ler o que o senhor Immanuel Kant escreveu, no ano de 1781, no prefácio à primeira edição da Crítica da Razão Pura: A nossa época é a época da crítica, à qual tudo tem que submeter-se. A religião, pela sua santidade, e a legislação, pela sua majestade, querem igualmente subtrair-se a ela. Mas então suscitam contra elas justificadas suspeitas e não podem aspirar ao sincero respeito, que a razão só concede a quem pode sustentar o seu livre e público exame. Assim como a religião e a legislação, também a realidade não quer submeter-se ao livre e público exame das razões que a assistem quando nega as minhas pretensões e ignora as ideias brilhantes que me ocorrem para salvação do mundo. Não apenas a realidade suscita justificadas suspeitas, como cria a certeza de que não está interessada na salvação do mundo. Agora, dito o que disse, posso continuar a minha sesta, neste dia sonolento, sem tempestades, nem raios e coriscos. Bocejo, é o que a realidade me permite, ela que se recusa a ler Kant, sabe-se lá a razão.

domingo, 28 de julho de 2024

Confiar

Nunca tinha lido e comecei ontem a ler o meu conterrâneo Claudio Magris, disse-me hoje, ao telemóvel, o padre Lodo. É brilhante, ouvi. Concordei de boa vontade. Logo no começo de Danúbio, perante a possibilidade de uma exposição sobre A arquitectura da viagem: história e utopia dos hotéis, ele – referia-se a Magris – escreve O projecto junto – redigido por professores das universidades de Tübingen e de Pádua, articulado segundo uma rigorosa lógica e acompanhado de bibliografia – quer levar à ordem inexorável do tratado a imprevisibilidade da viagem, a confusão e a dispersão dos caminhos, o acaso das paragens, a incerteza das noites, a assimetria de todos os trajecto. Isto é notável, exclamou o padre, pois fala da essência da vida. Não o sabia um essencialista, comentei. Devia, pelo menos, ter desconfiado, respondeu-me. Seja como for, continuou, e Magris nota-o de seguida, a existência é uma viagem, uma peregrinação. Sim, disse eu, uma peregrinatio ad loca infecta. Continua a desconfiar da bondade divina, devolveu-me. Não tanto da vontade divina, mas da qualidade dos materiais do mundo, a começar pelos humanos. Esse cepticismo não lhe faz bem, avisou-me. O cepticismo, caso não seja doentiamente pirrónico, é um modo de estar alerta. Há que desconfiar. Pois, respondeu-me o meu amigo, está enganado. Há que confiar. A confiança é fundamental. Voltei à citação de Magris e chamei-lhe a atenção de que o comentário do autor reflecte uma desconfiança estrutural no projecto académico, desconfia da redução do borbulhar existencial à arquitectura de um tratado ou mesmo à ponderada organização de uma exposição. É verdade, mas ele fá-lo porque confia mais no borbulhar da existência. Talvez tenha a esperança, acrescentei eu, que Leibniz tivesse razão ao afirmar que este é o melhor dos mundos possíveis. O padre riu e acrescentou que em breve estará por aqui, onde me encontro, e que no melhor dos mundos possíveis está aquela brasserie junto ao mar, uma das melhores mesas deste país. Para que dia marco o jantar, perguntei.

sexta-feira, 26 de julho de 2024

Jogos

Leio, num livro que não vem ao caso, a frase Não foi o homem que inventou o jogo. E esperei de imediato uma revelação extraordinária. Porém, apenas tive direito a uma citação de Schiller, é o jogo, e apenas o jogo, que torna o homem completo. Há coisas piores do que citações de Schiller, claro. Eu preferiria, contudo, uma continuação mais ousada, como afirmar foi o jogo que inventou o homem. Embora se saiba que não é possível encontrar uma essência – isto é, uma característica comum – partilhada por todos os jogos, essência cuja presença nos anunciaria de imediato estarmos perante um jogo, podemos afirmar que um elemento essencial dos jogos é o acaso. Ora aquilo que nós somos, as nossas características físicas e, possivelmente, não só, recebemo-las através da chamada lotaria genética. O espermatozóide paterno que fecundou o óvulo materno, por acaso disponível, foi aquele, mas poderia ter sido outro. Se assim fosse, já não teríamos vindo à existência, mas um outro cuja existência lhe pareceria tão natural como a nossa nos parece. Se isto é assim quanto aos indivíduos, talvez ainda seja mais quanto às espécies. Há aquela história darwiniana da evolução para adaptação ao meio. Parece fornecer uma regra, mas, na verdade, não elimina o acaso. O caminho adaptativo foi este, mas é plausível pensar que poderia ter sido outro, um caminho, por exemplo, que tivesse poupado a Terra à presença de uma espécie como a nossa. Imaginemos o futebol. A princípio um conjunto de seres humanos brincam com uma bola, correm, chutam, agarram-na, tudo de um modo caótico. Depois, lentamente, começam a introduzir regras. A ideia é eliminar o caos original, embora o acaso, por mais regulado por leis do jogo e tácticas competitivas que esteja, nunca desaparecerá. O mesmo acontece com cada um de nós e com a espécie a que pertencemos. Somos fruto desse acaso e este não é mais do que o jogo que a natureza joga consigo mesma. O jogo só torna o homem completo, como pensava Schiller, porque nós somos uma invenção do jogo. No fundo de nós, por mais que lutemos contra isso, existe um princípio de arbitrariedade. Antigamente, um homem de carácter era aquele que aparentava ter eliminado de si essa arbitrariedade originária, o que mostra que as antigas modas educacionais estavam assentes em puras aparências.

quinta-feira, 25 de julho de 2024

Traduções

A Áustria foi, no final do século XIX e no início do XX, um vespeiro de grandes escritores. Eis uma metáfora de péssimo gosto, como se os grandes escritores austríacos fossem vespas ou pessoas traiçoeiras e de má índole. Imagino, todavia, que um grande escritor austríaco posterior, Thomas Bernhard, não desdenharia da metáfora, aplicada não aos grandes escritores, mas aos austríacos em geral. Bernhard sofria dos pulmões, chegou a viver em Portugal por causa disso, mas sofria ainda mais pela a natureza da sociedade austríaca, que ele via composta por nazis dissimulados pelo catolicismo e a social-democracia. Não era de Bernhard que queria falar, mas de um poeta, um grande poeta que morreu jovem, aos 27 anos, de overdose de cocaína. Georg Trakl. Há uma tradução de poemas seus, mas que desconhecia até há pouco. Hoje, mergulhado na ociosidade, decidi fazer experiências e, usando o DeepL, o ChatGPT e um dicionário alemão-português, traduzir alguns poemas, entre eles o ciclo de A Jovem Criada (Die junge Magd). A experiência não me desagradou e, confirmei, o decisivo não é a tecnologia usada, mas a experiência pessoal, no caso a experiência de leitor de poesia, de quem a usa. Nos poemas assim lidos, consegui aproximar-me – tenho essa ilusão – da atmosfera poética que se desprende da obra de Trakl, talvez mais do que se os lesse na tradução portuguesa publicada. A razão é simples. Fui obrigado a reconstruir as traduções, sempre diferentes, que o tradutor automático e o chatbot ofereciam. Quando se está perante um texto traduzido por um ser humano e publicado em livro há uma tentação de conformismo perante o que está apresentado, o que gera uma leitura passiva, ao contrário daquela que me senti obrigado a fazer. Um dia, os dispositivos de tradução substituirão com vantagem o tradutor humano, porque terão mais capacidade, e mais velocidade, para apreender o espírito de uma obra do que um ser humano, mesmo especialista, e vertê-lo, ao espírito da obra, para outro idioma. Esse dia, imagino, ainda estará longe, mas a cada dia que passa estou menos certo dessa lonjura.

quarta-feira, 24 de julho de 2024

A génese

Por vezes, talvez não poucas, perpassam em mim pensamentos completamente parvos. Ao deparar-me com a data de hoje, 24 de Julho, pensei que coisa tão estranha haver um dia com nome de uma avenida de Lisboa. Este pensamento, porém, é mais aceitável do que pensar que existe um dia com o nome de uma praça, a praça 5 de Outubro, por exemplo. O 5 de Outubro ainda se vai sabendo as razões de haver ruas e praças com o seu nome, mas o 24 de Julho é mais associado a uma certa vida nocturna de há tempos. Contudo, foi a 24 de Julho que as tropas liberais, depois de derrotarem as miguelistas na Cova da Piedade, entraram em Lisboa. Daí haver uma avenida com esse nome na capital, que era absolutista e se tornou liberal. Imagino que não exista uma 24 de Julho no Porto ou em Aveiro. Mesmo em Coimbra ou Setúbal seria uma anormalidade. Contudo, como estamos em Portugal, podemos esperar toda a espécie de anormalidades, pois não nos falta talento para o anormal. Por exemplo, o meu talento para a anormalidade consiste em ter pensamentos parvos, isto é, não apenas insignificantes, mas também pequenos. A explicação deste texto reside nas temperaturas assombrosas que tive de suportar neste 24 de Julho. Os graus são tantos que começaram a infiltrar-se no corpo, passaram para a corrente sanguínea e quando chegara, há pouco, ao cérebro transformaram-se neste texto. Eis a génese da coisa.

terça-feira, 23 de julho de 2024

Tudo tem um tempo

Retenhamos a abertura de Vida à Venda, de Yukio Mishima. Quando Hanio recuperou a consciência, tudo resplandecia à sua volta com um brilho tão intenso que pensou estar no céu. Mas sentia uma forte dor na zona da nuca. E não é possível ter dores de cabeça no céu. É o último período que me atormenta. Mesmo numa obra de ficção, será ultrapassar os limites da experiência possível e fazer afirmações peremptórias sobre lugares onde nunca se esteve. Deixemos de lado a questão de saber se existe ou não um céu. Imaginemos que existe, mas o seu acesso é só possível acabada a vida por aqui. Aceitemos, pois essa é a melhor explicação, que aqueles que chegam ao céu, jamais voltam aqui para contar a realidade do além. Ora, como podemos afirmar que não é possível ter dores de cabeça no céu? Um argumento seria afirmar que no céu não se tem corpo, o que implica não ter cabeça. Depois, conclui-se que não pode doer aquilo que não se tem. Contudo, este argumento esbarra na experiência trivial das pessoas que sofreram amputações de membros, as quais continuam a queixar-se, muito tempo depois, de dores no membro que não têm. Isto abre uma janela para a compreensão da morte. Morrer seria uma amputação global do corpo. Se assim é, então, mesmo no céu, pode-se ter dor de cabeça, de barriga, de peito e até de cotovelo. Esta, todavia, por simbolizar a inveja, pode não ser muito bem vista no paraíso celeste e, talvez, não seja conveniente levá-la para lá. Retornando a Hanio, Mishima diz-nos que ele, ao sentir dor de cabeça, percebeu que falhara a sua tentativa de suicídio. São coisas que acontecem. As pessoas querem apressar a amputação do corpo e, na precipitação, falham. Não perceberam uma questão essencial da vida fora do paraíso. Tudo tem um tempo.

segunda-feira, 22 de julho de 2024

Prazo de validade

Precisava de um medicamento para tomar ao jantar. Fui à farmácia e decidi trazer dois. Cheguei a casa e descobri que nenhum deles era o que estava em falta. Nas manipulações da receita electrónica, no vai e vem do pin de acesso e do pin de opção, na multiplicação de receitas que se acumulam na aplicação, lá troquei um Olmesartan medoxomilo por um Hidroclorotiazida + Amilorida. A coisa podia ser pior, caso tivesse trocado o meu nome por outro qualquer ou me tivesse esquecido do número de contribuinte, baptizado há muito pelo pomposo nome de número de identificação fiscal. O truque é interessante. Passei de contribuinte para alguém com identidade fiscal. Este upgrade na relação com o Estado não foi acompanhado, porém, com um upgrade do meu hardware neuronal e ainda menos pela afinação das competências do software intelectual. Pelo contrário. Isto não é tudo na saga da decadência deste narrador sem narrativa. Desde há dois dias que um mistério vinha a assolar a minha relação com o computador. Do nada, onde quer que escrevesse, começavam a aparecer sequências de pontos finais. Querem ver que fui atacado por um vírus, pensei. Fiz pesquisa, mas não colhi informações sobre um vírus em forma de sequências de pontos finais. Reinicio o computador, mudo de browser, faço isto e aquilo. Por vezes, parece que a coisa pára, mas, quando menos espero, lá voltam as sequências de pontos finais. Tenho de comprar um novo teclado, pensei. Deve haver um problema com a tecla onde se encontra o ponto final. De aparência, porém, parecia de boa saúde. Até que se me fez luz. Tinha colocado uma série de coisas em cima do portátil e como o tenho ligado a um monitor e a um teclado, não me apercebia que essas coisas, em cima daquela espécie de tapete que serve de rato, me estavam a enviar sinais. Que as tirasse dali, guinchavam em forma de pontos. Com o hardware e o software pessoais desactualizados, levei mais de dois dias a compreender uma coisa básica. Isto é muito pior do que trocar o Olmesartan pela Hidroclorotiazida. Um dia destes tenho de verificar o prazo de validade, o meu, claro.

domingo, 21 de julho de 2024

Grande literatura

Samuel Johnson, o Dr. Johnson que terá dito, mas não escrito, o patriotismo é o último refúgio dos canalhas, escreveu inúmeros ensaios, merecedores de leitura, daquela leitura que se faz por prazer e não por dever. O ensaio não é, por norma considerado, como uma das manifestações mais elevadas da literatura, se comparado com a poesia, o teatro ou, a partir dos tempos modernos, o romance. Isso, porém, é um erro. Samuel Johnson, no ensaio Melindre e Rabugice escreve Quando a velhice ou a solidão amargam o espírito das mulheres, a sua malevolência normalmente é exercida numa supervisão rigorosa e odiosa de insignificâncias domésticas. Depois de exemplificar com a conduta de Eriphile ao longo de vinte anos, prossegue escrevendo Ela vive unicamente para manter em ordem a casa e o jardim, não sente nenhuma inclinação para o prazer, nem nenhuma aspiração à virtude, enquanto está absorvida na grande tarefa de conservar a gravilha sem erva e o rodapé sem pó. Perante o grande drama de encontrar o que ler durante as férias deste infausto, caso o seja, ano de 2024, há uma solução. Ler os Ensaios sobre a Virtude & a Felicidade, de Samuel Johnson, publicados pela E-Primatur em Junho deste ano, seleccionados e traduzidos por Pedro Galvão, professor na Faculdade Letras de Lisboa, no departamento de Filosofia. O primeiro ensaio tem por título Esperança Vã. Começa com uma observação pertinente: Túlio observou há muito que nenhum homem, por mais enfraquecido que esteja pelo tempo que já viveu, está ciente da sua própria decrepitude a ponto de supor que poderá não conservar o seu lugar no mundo por mais um ano. E o ensaio discorre sobre o tema por pouco mais de cinco páginas, dando lugar a um novo ensaio, também de curta dimensão e de grande talento. Não se trata de Filosofia, mas de grande literatura.

sábado, 20 de julho de 2024

Golias e David

Esta a ser um massacre. Não, não se trata de um acto terrorista, mas de um jogo de Râguebi entre um David e um Golias, só que o David não tem funda e o Golias, depois de um acidente de percurso, está a tirar partido da sua força. O Golias é a África do Sul, actual campeã do mundo, e o David é Portugal, que, ao intervalo, está a perder por mais de vinte pontos. Nem vou escrever no fim do jogo, é melhor não ter o panorama todo sob os olhos, pois o resultado pode ser traumático. Diante de mim, tenho um livro publicado em 1970, pela Sociedade de Expansão Cultural. Encontrei-o por acaso e faz parte daquilo a que se dá o nome de literatura colonial. É um livro de contos e novelas de Fernando Reis, com o título Histórias da Roça e transporta para a ficção a experiência do autor em S. Tomé e Príncipe. Tem uma capa excelente do pintor Neves e Sousa. A Sociedade de Expansão Cultural foi uma editora criada pelo escritor Domingos Monteiro. Esteve activa nas décadas de cinquenta, sessenta e setenta do século passado e teve um papel importante na divulgação de inúmeros escritores. O tempo foi implacável tanto com a editora como com os seus autores, alguns deles ainda a merecerem a ser lidos. Tão implacável quanto o Golias do Râguebi com o pequeno David, o que esqueceu a funda.

segunda-feira, 15 de julho de 2024

LHS 1140b, a esperança

Estou extasiado e radiante. Foi descoberto um exo-planeta, apenas a 48 anos-luz da Terra, que poderá ter não apenas atmosfera como água líquida. Eis um motivo para o meu êxtase e para a minha radicação. Cansado da má gestão do nosso planeta, tenho agora a oportunidade de ir para outro, ali ao virar da esquina. O que são, se não me enganei nas contas, 454 118 400 000 000 km? Nada. Enquanto uns imigram para a Suíça, para França ou, os mais temerários, para os EUA, eu, montado no meu Rocinante, imigro para o LHS 1140b. Ainda hei-de lá chegar bem a tempo de procurar ocupação e reinventar-me numa nova condição. O meu problema é que não sei o que hei-de levar para a viagem. Haverá, no caminho, restaurantes de beira de estrada? Encontrarei shoppings para comprar roupas, caso rasgue umas calças ou uma camisa? E farmácias haverá? Peço umas receitas aos diversos médicos que frequento, a contragosto, diga-se, e vou-me abastecendo ao longo do trajecto. Levo a família ou vou sozinho, como um batedor? São estes pequenos problemas que ainda me prendem a esta Terra, mas, tenho essa expectativa, acabarei por os resolver, pois um herói resolve não apenas os problemas dos outros, os mais fáceis, mas também os seus, os mais intrincados. Dizer Adeus, ó Terra que o LHS 1140b espera-me é a esperança que me move. O pior é o Flexiban. Dá-me uma soneira diabólica. Posso estar a dormir na estação de saída e ir parar ao centro da Via Láctea e ser deglutido por algum buraco negro.

domingo, 14 de julho de 2024

A tomada da Bastilha

Há pouco pensei que a imperfeição do calendário espoliou os franceses de um dia feriado. Aliás, como é possível comemorar a tomada da Bastilha num dia de descanso. As tomadas das Bastilhas não podem ocorrer nem aos domingos, nem aos feriados, tão pouco aos dias santos, mesmo aos sábados se tornou impossível. Em França, no ano de 1789, ocorreu a uma terça-feira, um dia bom para tomar a Bastilha. Com isto quero demonstrar a imperfeição dos calendários que, apesar da sua regularidade global, sofrem de uma irregularidade acintosa no particular. Qualquer um de nós deveria fazer anos no mesmo dia do mês e da semana. Quem, como eu, nasceu a um sábado, não percebe como pode fazer anos a uma terça-feira. Nesses anos temo que, por um qualquer acaso, se confunda o meu aniversário com o da tomada da Bastilha, apesar de ambos os aniversários estarem afastados no calendário. Há pouco, estive a contemplar as águas do oceano. Estavam cor de chumbo, ao contrário de ontem, que pareciam verdes. Outra irregularidade da natureza. É uma coisa num dia, outra no outro. Uma falta de carácter, uma inclinação para a volubilidade. Tanto os calendários humanos como as disposições da natureza são marcados pela leviandade, o que deixa aturdidas pessoas graves como este narrador, que cultiva a constância e abomina a irregularidade. Pelo menos em certos dias. Há outros, porém, em que o amor pela excepção ultrapassa em muito o da regra. Talvez, por isso, seja um narrador volúvel, mesmo quando enaltece a constância e abrenuncia a desarmonia de tudo o que está fora da regra. Seja como for, nada tenho a ver com a tomada da Bastilha, coisa que ocorre um pouco por todo o mundo, mas na qual os franceses são virtuosos. Sempre que sentem uma indisposição, tomam uma Bastilha. Já os portugueses preferem tomar uma pastilha. Sou exímio em fazer trocadilhos sem tino. Ainda bem que França foi eliminada do Europeu de futebol. Imagine-se que chegava à final e a Inglaterra lhes ganhava. Os franceses teriam de ceder a tomada da Bastilha aos ingleses, o que, como se calcula, os poria indispostos e obrigá-los-ia à tomada da pastilha.

sábado, 13 de julho de 2024

Indirectamente

Pego no livro com cuidado, com uma unha começo a separar, da contracapa, a etiqueta com o preço, a livraria que o vendeu e a data em que a etiqueta foi produzida. Depois, colo essa mesma etiqueta no verso da capa. É um sinal para o futuro. Leio alguns poemas e fico a meditar num. A alga queria ser flor, / a flor queria ser árvore, / a árvore queria ser pássaro. // O homem queria ser asa. Onde está o núcleo onde se gera a poeticidade deste poema, Lição de Botânica, de Ricardo Gil Soeiro? Encontra-se na suspensão da continuidade dos três primeiros versos. Em vez de nos dizer o que o pássaro queria ser, o poeta omitiu a vontade do pássaro, suspendeu o discurso e, ao retomá-lo, o pássaro é apenas referido metonimicamente, asa, como sendo o aquilo que o homem desejava ser. A árvore, explicitamente, pode querer ser pássaro, mas o desejo do homem só se pode enunciar indirectamente, como se todo o desejo trouxesse consigo uma culpa que não permite dizê-lo, mas apenas sugeri-lo. Não pagou caro, Ícaro, o seu desejo de ser pássaro? Há coisas que nunca se esquecem.

sexta-feira, 12 de julho de 2024

Da verdade

Alguém, no afã de persuadir o leitor para o seu campo de ideias, escreve A verdade relativa deve ser dita com prudência e circunspecção, porque ela é incerta pelo facto de não ser absoluta. Ora, há aqui um equívoco na utilização das palavras, uma oposição, como se os termos fossem antónimos, entre absoluto e relativo. Ora, toda a verdade é relativa a alguma coisa. Imaginemos que a seguinte proposição: Este narrador é um idiota.  Sem esforço, imaginemos ainda que a proposição é absolutamente verdadeira, pois descreve com completa exactidão a realidade do narrador. Esta verdade absoluta é relativa. Relativa ao narrador. A proposição só e verdadeira na sua relação com um certo referente. Podemos então afirmar que tudo aquilo que é absoluto é ao mesmo tempo relativo. É uma condição da linguagem na sua função declarativa. O seu dizer é sempre dizer de qualquer coisa, é um dizer que está relacionado com o seu objecto, digamos assim. Contudo, o que é mais interessante na frase é a recomendação de prudência e circunspecção. Eu estou de acordo, mas não pelos mesmos motivos. Não é porque aquilo que possa dizer seja incerto, mas porque a prudência e a circunspecção tornam o mundo melhor. É uma questão prática. Quanto menos se falar, escrever, etc., melhor é o mundo, menos poluído fica com os devaneios que ocorrem a falantes e a escreventes ou, numa linguagem mais religiosa, a escribas e fariseus. Por exemplo, este narrador, que não passa de um escriba farisaico, o que faria de melhor para cuidar do mundo seria omitir aquilo que lhe passa pela cabeça e desce pelos dedos para o teclado. Eis uma verdade absoluta na sua relação ao escriba.

quinta-feira, 11 de julho de 2024

Demónios

Consta que uma das teorias físicas mais desconcertantes é a mecânica quântica. Numa daquelas leituras inúteis a que, por vezes, me dedico sem que consiga perceber a razão, descobri que o princípio de incerteza de Heisenberg corrobora uma das intuições que guiam o senso comum. O passado está perfeitamente definido, enquanto o futuro é imprevisível. As relações de incerteza dizem-nos que não podemos saber ao mesmo tempo a posição de uma partícula subatómica e a quantidade do movimento, o que terá por consequência não podermos determinar a sua situação no futuro. Contudo, parece ser possível a partir de medidas relativas de um electrão, por exemplo, determinar a sua quantidade de movimento e a sua posição no passado. Isto contraria a pretensão do Marquês de Laplace, matemático e físico que viveu nos séculos XVIII e XIX. Este tinha uma visão determinista do universo e considerava o presente como a consequência do passado e como causa do futuro. Laplace imaginou que se um intelecto, suficientemente poderoso, tivesse conhecimento, a dada altura, de todas as forças que movem a natureza, teria a capacidade de incluir o movimento de todos os elementos que compõem a realidade numa única fórmula e, para ele, nada seria incerto, nem o passado, nem o futuro. Talvez não tenha sido um acaso ter sido dado a esta experiência mental o nome de Demónio de Laplace. Que coisa mais demoníaca poderia haver do que conhecer o futuro? Ora, Werner Heisenberg e Niels Bohr com a sua física insensata, digamos assim, vieram devolver a esperança aos homens. O futuro é imprevisível. Isto coloca um grave problema teológico. Se o futuro é imprevisível, então Deus não pode ser omnisciente, não tem conhecimento do futuro. Problema de fácil solução, e essa não necessita de passar pela negação da existência de Deus. Basta considerar que Deus vive na eternidade, num eterno presente. Logo, para ele, tudo existe como se estivesse no passado. Sendo assim, ele pode saber a quantidade de movimento e a posição de qualquer partícula do universo. É evidente que isto levanta novos problemas. Se Deus pode saber tudo, então tudo está determinado e com isso volta o demónio de Laplace. Não, propriamente. O demónio de Laplace, tal como os homens, move-se no tempo, enquanto Deus está fora dele. Claro, há razões para que o texto de hoje tenha saído este. Uma noite mal dormida. Posso imaginar mesmo um episódio febril, embora seja falso. Se estivesse na posse mínima das minhas faculdades não teria escrito o que escrevi, mas a vida é o que é. Com ou sem demónio de Laplace.

quarta-feira, 10 de julho de 2024

Da benevolência da química

Bendita química, ó aliviadora dos atormentados. Foi isto que pensei quando comecei a sentir os efeitos benévolos do analgésico receitado para enfrentar as dores não tanto da extracção do tal molar, mas da preparação para o implante. Isto imagino eu. O caso é simples. Quando a anestesia, outra conquista da química, começou a perder efeito, o corpo decidiu ajustar contas comigo e começar a vitimizar-se da ablação sofrida. Comprimido tomado, a vingança a afirmar-se, mas a partir de certo momento a situação inverteu-se. A dor, e com ela a vingança, começou a retroceder. Eu sei que ela vai voltar, mas espero estar equipado para a derrotar. Só espero que não sejam esperanças vãs. Não é aconselhado sair de casa, nem fazer exercício. Também me foi proibido o álcool por uma semana, logo agora que tinha comprado uns brancos bem interessantes. Em vez de um belo branco fresco, o aconselhado é fazer gelo de quinze em quinze minutos. Como achei que isso implicaria demasiado movimento, troquei para um prazo de vinte em vinte minutos. Mesmo para um cavaleiro andante, não há maior aventura do que lidar com o corpo, esse amigo que, de um momento para o outro, se enfurece e se torna inimigo. Vou passar a tarde a ler uma peça de teatro do norueguês Knut Hamsun, Aux Portes du Rayume (não existe em português), que faz parte de uma trilogia que inclui ainda Le Jeu de la Vie e Crépucule. Isto, enquanto ponho e tiro o gelo da cara. Também hei-de comer um gelado.

terça-feira, 9 de julho de 2024

Meditação extraterrestre

Um site anunciava que revelações surpreendentes acerca dos extraterrestres poderão ser feitas até final do ano, melhor, até 18 de Outubro. Portanto, o que é anunciado não são as tais revelações, mas a possibilidade de estas ocorrerem. Se as revelações não ocorrerem a notícia não está factualmente errada. Posso noticiar que Espanha poderá vencer França no jogo de logo à noite. Se França ganhar, a minha anunciação não estará errada. Os órgãos e sites de informação não deveriam fazer profecias, ainda por cima na modalidade do possível. Jornalistas não são profetas nem videntes, mas pessoas que informam sobre factos. O que são factos? São coisas que estão feitas. A palavra facto deriva da latina factu- particípio passado do verbo facĕre, que significa fazer. Os jornalistas apenas deveriam informar sobre o que está feito. Ora, aquilo que está feito – e, por isso, é um facto – consumado está e perdeu o seu poder de mover os ânimos. Então os jornalistas dedicam-se à especulação, desenhando mundos possíveis. Neste caso, um mundo possível é aquele em que não exista qualquer informação relevante sobre a existência de extraterrestres; outro mundo possível é o da existência de informação factual sobre a existência desses tais ET. Pergunto-me em qual desses mundos gostaria de viver. Depois, concluí que seja qual for o mundo em que tenha de habitar, a informação sobre a existência ou não de extraterrestres não me serve para nada e não faço ideia o que me moveu para escrever esta prosa.

segunda-feira, 8 de julho de 2024

O corpo

O corpo que também somos é uma coisa extraordinária até ao momento em que damos pela sua existência. Damos por ele não quando o vemos ao espelho, pois aí damos apenas pela existência de um reflexo, mas quando alguma coisa desse corpo se torna incómoda. Foi o que me aconteceu hoje com um dente. Depois de uma viagem à capital de distrito, comecei a notar que tinha um molar no lado esquerdo do maxilar inferior. A descoberta não foi motivo de júbilo. Então, perante o meu desagrado, ele começou a ameaçar com uma dor. Pouco depois do almoço, estava sentado na cadeira da dentista para avaliar a situação. A sentença foi a que eu esperava. Este molar já me tinha chamada várias vezes a atenção. Foi de tratamento em tratamento até que hoje recebeu o veredicto: ablação. Antibiótico mais ibuprofeno e quarta-feira será o dia da execução e o início dos trabalhos da substituição. Isto demonstra a minha tese acerca da natureza extraordinária do corpo. Quanto menos se dá por ele, mais extraordinário é. A grande vantagem dos anjos sobre os homens é não terem corpo, para além de não terem sexo. Nunca correm o risco de se deparar com ele num voo malsucedido. Alguém já ouviu falar de um anjo que fosse ao dentista? Ninguém.

domingo, 7 de julho de 2024

A jactância da diferença

Há domingos que se perdem e deles não fica rasto no grande armazém da memória, como, no início do primeiro poema de A Ilha – Mar do Norte, Rainer Maria Rilke nos lembra: A próxima maré-cheia apaga o caminho no baixio, / e tudo se torna em todos os lados igual. Essa estranha disputa que anima os corações humanos, a que opõe a diferença à igualdade, tem sempre a mesma solução. A igualdade acabará por vencer, por grandes que sejam os esforços para a diferenciação, pois o baixio é o lugar dos homens e basta que a maré-cheia venha, e ela nunca deixará de vir, para que tudo retorne a uma mesmidade, onde não há lugar para se inscrever a jactância da diferença. Por isso, eu deveria ser mais comedido na lamentação de um domingo que morre na indiferença. Esse é o destino de tudo e de todos, a começar por mim. Acho que vou sair, caso encontre um restaurante aberto para ir jantar. A indiferenciação dominical cansou-me.