Quando, hoje de manhã, atravessei a avenida marginal, havia
nos castanheiros um silêncio ruidoso, quase agreste, talvez uma atitude de
desafio aos que, como eu, por ali passam sem os ver, ou, talvez mais
indesculpável, só os vendo naquela época do ano em que o seu ser se exibe numa
floração sumptuosa, que cativa os olhos e os obriga a erguer-se às copas. Uma
pessoa vai por ali, enclausurado no carro, a ouvir música, e enrodilha-se no
primeiro oximoro que lhe aparece e logo começa pensar em silêncios ruidosos ou
na paz conflitual que a envolve. E por uma súbita associação de ideias percebe
que o silêncio ruidoso dos castanheiros é uma metáfora de certos ambientes que
frequenta, o horizonte onde se inscreve aquilo que diz. Nunca é tempo perdido
falar com castanheiros ou carvalhos, ou mesmo a velha oliveira que o tempo
deixou esquecida num relvado posto ali para que se pensasse que somos
civilizados.
terça-feira, 31 de outubro de 2017
segunda-feira, 30 de outubro de 2017
Sombrio
A noite cai agora demasiado cedo. As pessoas enrolam-se nela
e vão rua fora, e eu vejo-as passar em direcção ao seu destino, sem que saibam
que tudo é fortuito, mesmo a noite onde se escondem ou a hora em que ela cai.
Dizem-me, por vezes, que vejo as coisas demasiado sombrias e que preciso de me
encantar com o mundo. E eu penso que devo precisar de ir ao oftalmologista,
pois os olhos inclinam-se para ver sombras onde os outros vêem tudo tão
luminoso. Talvez o problema se resuma à falta de óculos ou, em caso mais
extremo, a alguma catarata que se interponha entre mim e o esplendor fulgurante
do mundo.
domingo, 29 de outubro de 2017
Questões filosóficas
Um problema desabou aqui em casa ao cair um dente da minha neta
mais velha. Pôr o dente por baixo da almofada ou não, para que a Fada dos Dentes
tenha oportunidade de exercer a sua benevolência. Perante o dilema, a mais nova
diz: “A mana não acredita no Pai Natal nem na Fada dos Dentes, mas eu gosto de
acreditar. Faço bem, não faço, avó?” E assim, numa daquelas conversas que ela
gosta de entretecer com os adultos, resolve problemas filosóficos com mais
rapidez do que aqueles a que eles se dedicam. A magna questão de crer no Pai
Natal ou na Fada dos Dentes não pertence ao reino da epistemologia, mas ao da
estética – eu gosto de acreditar – e ao da ética – faço bem, não faço? E assim,
ficamos a saber que não é a verdade que interessa, mas o prazer. E se nos dá
prazer, então temos o dever de acreditar. Será isto o fundamento da religião?
sábado, 28 de outubro de 2017
Crisântemos
Pego no livro de haikus de Bashô e leio um. Não é bem ler,
antes uma tentativa, condenada ao fracasso, de escutar o sentido, o fundo
sentido que, apesar da tradução, ainda deve ecoar no texto. Escreveu o poeta ou
o tradutor: “para não morrer no outono / a borboleta bebe o orvalho /
depositado sobre o crisântemo”. Não sou japonês, não pratico o Zen, e tudo o
que ressoa em mim é o desespero da borboleta que, por um jogo fácil de
associação, me faz lembrar os homens neste Outono português. Olho a manhã e duvido
que tenha havido, mesmo na primeira aurora, orvalho sobre os crisântemos. E uma
pergunta assalta-me: haverá este ano crisântemos suficientes para que a memória
dos mortos não feneça e os vivos se sintam reconciliados com o outro mundo?
sexta-feira, 27 de outubro de 2017
O elusivo Excel
Tenho estado às voltas com o Excel. Para dizer a verdade,
não sei nada da ferramenta, mas fascina-me o espírito geométrico e exacto que
por ali reina. Dou comigo a pensar que deveria ter enveredado pela matemática
ou pela física em vez de me interessar pela filosofia e pela literatura. É
assim que se perde uma vida. Suspendo estes pensamentos dolosos e abro uma
frente de combate com o software para ver se, sem recorrer a terceiros, me
desvenda os segredos que procuro. Porém, ele é avaro e ríspido e logo me atira
ao tapete. Há pouco, deixou-se surpreender e descobri uma das coisas que
procurava, mas ainda falta o mais importante. O melhor é pegar na edição
completa dos haikus de Matsuo Bashô, o eremita viajante, que a Assírio &
Alvim teve a caridade de publicar, e procurar ali a chave que me há-de abrir o
caminho para o beneplácito do elusivo Excel. Há coisas que não têm solução e
pessoas que não têm cura.
quinta-feira, 26 de outubro de 2017
O reino da anomalia
Os dias quentes deste Outubro alucinado correm engavinhados
à inutilidade. Esta não é uma negação do útil, mas um florescimento de
anomalias que se tornam tudo o que um certo modo de vida pode conter, até que
não seja outra coisa senão uma grande e monótona anomalia. Quando se escolhe ou
aceita um modo de vida anómalo, o mais certo é que se viva na sombra da
anomalia. Por vezes, um vento desassisado desce sobre nós como o Espírito Santo,
em línguas de fogo, desceu sobre os apóstolos. É o nosso dia de Pentecostes. E
então falamos em diversas línguas e profetizamos sobre o fim do reino da
anomalia, mas não há ninguém para ouvir. O entardecer inclina-se sorrateiro
para a noite e recordo-me da minha velha gata. Eu falava e ela ouvia. Depois,
miava e saltava-me para o colo a ronronar, enquanto eu lhe passava a mão pelo
dorso. E tudo estava no seu lugar.
terça-feira, 24 de outubro de 2017
O fim do mundo
Dei comigo a cismar sobre O Leopardo, de Visconti. Acontece-me, por vezes, a memória, sem que
eu perceba porquê, voltar a esse filme. O que me prende nele, como num sonho
recorrente, é a cena inicial, a da oração do terço, e a final, a do baile.
Entre estas duas, é um mundo que se afunda na ruína e outro que desponta.
Assaltam-me imagens das contas a deslizar pelos dedos dos que rezam
entrecortadas por outras, onde os pares rodopiam no salão de baile. E eu não
sei, juro que não sei, se um mundo, outrora sólido e garboso, acaba com uma
oração ou se com uma grande festa. Se num mistério doloroso ou se numa promessa
gozosa.
segunda-feira, 23 de outubro de 2017
Um galo
A noite ruge de uma forma muito distinta do dia. Oiço-a
murmurante e no murmúrio descortino a ameaça. Exceptuando talvez a primeira
juventude, nunca fui um animal noctívago. Talvez me dê mal com as potências das
trevas e prefira, sem hesitação, deixar vaguear os olhos sobre as coisas
iluminadas pelo Sol. Alguém fecha uma persiana, um carro passa na avenida, mas
a noite continua, levada pelo seu rugido, a deslizar para a madrugada. O pior é
não haver por aqui um galo. Quando cantasse, saber-se-ia que o dia se aprestava
para estilhaçar a parede negra com que somos envolvidos. Um galo a Asclépio devia
Sócrates na hora da morte. Um galo é o que todos devemos quando a noite se
aproxima.
sexta-feira, 20 de outubro de 2017
Teoria
Tenho um aluno, aliás excepcional, que parece ter
desenvolvido um enorme interesse pela política. Apercebi-me que esse interesse
nasceu mais ou menos com a mesma idade em que eu despertei para o fenómeno. É
evidente que, devido à distância geracional, os espaços ideológicos que
exerceram essa atracção são muito diferentes. Comum é que no centro desse
interesse pela política há um enorme fascínio pela teoria, pela explicação do mundo
e pelos argumentos que suportam essa explicação. O que não sabem, aqueles que
muito novos são fascinados pela teoria, é que esta é como a ideia das quatro
estações. O clima recusa-se sempre a cumprir os prazos determinados pelo
calendário, como se vê agora, em que um dia destes entramos no Inverno sem ter
saído do Verão. No fundo, as teorias são revoltas contra a realidade, uma
espécie de libelo acusatório contra a desordem do mundo, e quando se está na
primeira juventude, como eu mesmo experimentei, a desordem do mundo é
inaceitável. A teoria parece então simplificar e ordenar esse caos patológico.
Depois, percebe-se que a desordem é a própria natureza do mundo e o fascínio
pela teoria perde o encantamento. Deixa de ser um espaço mítico e passa a ser
um instrumento de trabalho, quanto menos rígido melhor, para lidarmos com a
vida e o mundo. Isso, porém, é uma experiência que cada um faz por si mesmo,
percorrendo o caminho que escolheu ou que o escolheu. O pior é mesmo o Outono
hesitar em ser Outono e querer continuar Verão.
quinta-feira, 19 de outubro de 2017
Hooligan
A Antena 2, estação de rádio a que sou fiel, tanto quanto posso,
há décadas, tem o condão de me exasperar. Sintonizo-a e apenas quero ouvir
música, mas, por vezes, a estação insiste em servir-me uma conversa que, vá lá
saber-se a razão, me há-de tornar culto. Dispenso, de mau humor, o
enriquecimento oferecido e viajo para o spotify ou para o youtube, só para não
ter trabalho de pôr um CD ou um LP. Nesses momentos de exaspero, fico na dúvida
se serei um bocadinho autista, como se diz cá por casa, ou se não passarei de
um hooligan, daqueles a que refere Jason Brennam no seu livro Against Democracy. E enquanto selecciono
os Nocturnos, de Chopin, pela Brigitte Engerer, penso que, nestes dias, tornei a constatar que estou rodeado de
hooligans políticos. Uns mais amáveis e amenos, outros mais exaltados e
exasperados, mas quase todos hooligans. Vulcanos, esses são raros, muito raros,
embora os haja. Mas mais que a política, é a conversa atoleimada, a que me há-de
salvar da incultura, que me aproxima do hooliganismo. Um dia destes talvez
fale de hobbits, hooligans e vulcanos, caso não tenha mais nada para dizer.
quarta-feira, 18 de outubro de 2017
Dever ser
O vento bate nas persianas, enquanto a música vinda da
escola aqui ao lado invade o escritório. Tenho de decidir se quero que o ar
continue a entrar ou se me poupo ao gosto musical que outros teimam em
impor-me. E sinto-me enrolado nessa eterna controvérsia entre aquilo que é e
aquilo que deve ser. Se olho as árvores da avenida, cujas folhas, tocadas pelo
vento, se entregam ao êxtase da queda, não me ocorre nenhum dever ser. Poderia,
porém, olhar para as pessoas sem carregar comigo os óculos do dever ser? Eis
uma pergunta muito pertinente nestes dias, penso. E dou comigo a dizer que era
assim que as deveria olhar, olhá-las sem as pintar com aquilo que elas deveriam
ser mas não são. Rio-me, vítima de mim mesmo, do meu dever ser, e fecho a
janela.
terça-feira, 17 de outubro de 2017
O fragmento 18
Enquanto me preparo para sair não me sai da cabeça o início
do fragmento 18 de Heraclito: “se não esperarmos o inesperado, não o
encontraremos”, traduzo, de memória, duma tradução francesa. Dupla traição. É
verdade que pela manhã deve haver coisas mais interessantes para pensar,
enquanto se toma o pequeno almoço ou se lava os dentes. Mas quem não sabe que
somos mais escravos dos nossos pensamentos do que seus senhores? E o Heraclito
e o seu malfadado fragmento lá calcorreiam entre os meus neurónios, ainda adormecidos.
Da janela, enquanto bocejo, avisto um Outono envergonhado e oiço o rumor
indiferente dos carros que passam. O fragmento caminha, caminha dentro de mim à
procura de um porto onde atracar. Por fim chega ao seu destino. Afinal, vivo
num país que sempre espera o inesperado, pois está sempre a encontrá-lo. Quando
a minha mão abre a porta de saída, hesito longamente. Também eu estarei à
espera do inesperado?
segunda-feira, 16 de outubro de 2017
A promoção da cegueira
Quando pus o carro a trabalhar, para sair da Maria Lamas, a
Antena 2 estava a dar um programa sobre os irmãos Grimm. Alguém referia, não
cheguei a saber quem era, a forma como os Grimm tinham tornado os contos
populares em algo mais aceitável para a moral da sua época. O exemplo usado foi
o da Branca de Neve. Originariamente, o conflito não era entre a madrasta
malvada e a bela e doce enteada, mas entre mãe e filha, provavelmente uma
rivalidade de tonalidade psicanalítica. A idealização, com a clara demarcação
entre o bem e o mal, por muito encantadora que possa ser, tem o vício de apagar
a experiência que o conto popular traria consigo. Olho para aquilo que me
envolve, para as pessoas por quem passo, para a avenida por onde encontro o
caminho de casa, e a tentação de envolver a realidade com o véu do encantamento
é grande. Os Grimm – e outros como eles – tiveram um enorme papel no treino para
nos tornarmos cegos. Não, uma mãe e uma filha não podem rivalizar, isso é
imoral. E, por isso, não há nada como esse exercício de cegueira que transforma
uma mãe numa madrasta. A realidade tem sempre um peso insuportável.
domingo, 15 de outubro de 2017
Vento de Outono
Ao abrir a janela, atingiu-me uma lufada de ar quente.
Afinal, as previsões confirmam-se, ponderei. Chegaremos aos 35º. Não
sei o que hei-de pensar desta minha nova obsessão com o estado do tempo. Temperatura
de Verão, mas a cor da luz não engana ninguém. Os prédios, onde ela se
reflecte, ostentam agora um ar de melancolia tão distante da irritante jactância
com que se mascaravam nos dias mais violentos de Julho e Agosto. As pessoas
passam enroladas em conversas de domingo. Dois cães olham-se, medem-se, ganem e
afastam-se de rabo a abanar. Os domingos são assim, disse para mim, territórios
onde nem os cães gostam de se confrontar. O folhedo caído, levanta-se enovelado
pelo vento. Este não engana. É o velho vento de Outono. Tenho sede. Fecho a
janela e recolho-me reconciliado.
sábado, 14 de outubro de 2017
Comprar cadernos
Por vezes, compro cadernos. O papel em
branco fascina-me. Imagino, então, que os posso encher com aquilo que me venha
a ocorrer. Sou muito hábil em produzir justificações deste género. Tivesse eu
talento para outras coisas como tenho para a justificação. Depois, chego a casa
e arrumo-os e eles desaparecem da vista, do coração e até da memória. Poderia
desconfiar que há em mim uma propensão para a acumulação. Nada de mais errado.
Acabo por dá-los. Substituo a utilidade pela caridade. As minhas netas estão
naquela idade em que precisam mesmo de um caderno que, rapidamente, se há-de encher
de desenhos ou de jogos cujas regras me escapam ou, o mais provável, me seja
vedado o conhecimento. Nunca é, contudo, o desejo de agradar aos outros que me
leva a comprar esses cadernos. É a textura do papel ou a brancura da página rasgada
por linhas de cor indefinida, se escolho um pautado, ou, acima de tudo, a
necessidade que tenho de anotar neles o que me há-de ocorrer. Há décadas que não
escrevo uma linha em papel.
sexta-feira, 13 de outubro de 2017
Fronteiras
Sou um amante de fronteiras, desses espaços transponíveis à
custa de ritos de passagem e de cerimoniais de acolhimento e de rejeição. Amo-as
também porque são uma quimera inscrita na secura do espaço… ou do tempo. Por
exemplo, a sexta-feira à tarde é uma fronteira ténue, mas viva, entalhada na
ficção do calendário. O pior é a sua porosidade, a incapacidade de reter o
tempo do negócio e afastá-lo, sem piedade, das horas de ócio. Por vezes, desconfiamos
que essa raia não passa de um logro. É então que mais a amamos, pois não há
amor que não exija o véu de uma ilusão.
quinta-feira, 12 de outubro de 2017
Cuidar das orquídeas
Uma grande excitação vai por aí. Fala-se de acusações e
arguidos, e do regime e sei lá eu mais de quê. Lá fora, alguém diz que tem de
ir tratar das orquídeas. Empurrada pelo vento, uma porta bate. A água corre,
oiço-a. Estou sentado e olho a janela. Ao longe, os cedros estão a secar e as
paredes do hospital cobertas de bolor. Um pombo fendeu o horizonte e
desapareceu. Pego num livro, mas, nem sei porquê, começa a desfilar diante de
mim a sorte miserável de alguns déspotas odiosos. E nunca sei quem é pior, se o
odioso justiçado, se a multidão que ulula por aí o seu ódio justicialista. A
luz do sol ainda bate na parede do prédio da frente. Débil. Temerosa. Ao menos,
se eu fosse um Nero Wolfe teria umas orquídeas para tratar e tudo seria mais
fácil, penso. Morreriam, grita em mim a voz que nunca se cala.
quarta-feira, 11 de outubro de 2017
Peso
Há dias que deslizam como uma sombra e caem, abruptos e
inóspitos, sobre os nossos ombros. Não vale a pena erguer a voz. A noite virá
para que, nascido o Sol, um novo dia se faça sombra e pouse, com o seu peso
nunca suportável, no vozear sem fim dos homens. Eles, porém, não se calam.
terça-feira, 10 de outubro de 2017
Atraso
O dia amanhece com uma penumbra a toldar-lhes o rosto.
Depois, a máscara há-de cair-lhe e, contra o meu desejo, a temperatura subirá
impiedosa e impenitente. Levanto-me, enrolo-me nessa ameaça estival Outono
dentro, e oiço o rumor matinal dos carros a precipitarem-se, ao longe, como
sonâmbulos, auto-estrada fora. Olho pela janela e encolho os ombros. Fecho os
olhos e vejo a terra seca e gretada, ervas e árvores, imagino-as em genuflexão,
murmúrios levados pelo vento para que a misericórdia de um deus lhes traga água.
Nenhum pensamento perpassa, só a sensação do calor que a tarde trará, o sol a
lacerar-me já a pele. Nos olhos de quem há-de passar por mim antevejo uma
ameaça de deserto, a areia a golfar-lhes das órbitas. Uma longa caravana
serpenteia as dunas. Ponho a água a correr e penso: estou atrasado.
segunda-feira, 9 de outubro de 2017
Fraquezas
Por vezes, entretenho-me em discussões que, sei-o à partida,
são inúteis. Inúteis porque não conduzem a lado algum, não levam a um acordo
mínimo. As partes olham de pontos de vista diferentes e, como não podia deixar
de ser, vêem coisas diferentes. E aquilo que descobrem é tido como uma verdade.
Difícil é explicar que sobre certos assuntos não há outra coisa senão
perspectivas, visões parciais, limitadas, as quais pouco têm a ver com a
realidade sobre a qual se terçam argumentos. Mais difícil ainda é fazer perceber
que é possível sobre esses assuntos defender um ponto de vista sabendo que ele
é limitado e, essencialmente, desadequado. Não por um desejo de persistir no
erro, mas pela natureza belicosa do espírito humano. Nem sempre se resiste a si
mesmo.
domingo, 8 de outubro de 2017
O irremediável
Há coisas que são irremediáveis, portas que se abrem e, mal
transpomos o limiar, logo fecham para nunca mais se voltarem a abrir. Já não
consigo reconstruir tudo o que vivi nesse dia. Lembro-me que fui acompanhado
pela minha mãe e entregue a alguém conhecido dela. Fiquei no meio de uma matula
que, desempoeirada, corria, gritava, guinchava, entregava-se a jogos que eu
desconhecia de todo. Quando tocou uma sineta – talvez uma campainha – a multidão,
trajada de bata branca, distribuiu-se, magicamente, pelas duas salas. Numa
delas, aquela para onde entrei, estava uma senhora, talvez também tivesse uma
bata branca, cujo nome, confesso com tristeza, acabei por esquecer. Isto
passou-se a 8 de Outubro de 1962, uma segunda-feira, o meu primeiro dia de
escola. Quando a porta da sala se fechou, nunca mais voltei ao mundo encantado
de onde a minha mãe me trouxera. Há coisas irremediáveis.
sábado, 7 de outubro de 2017
Não pensar
Leio: "Os corpos são geografias deslocadas" e já
não quero ler o resto do poema de Tolentino Mendonça. Tenho medo que o primeiro
verso se estrague pela contaminação dos seguintes. E fico a pensar: o meu corpo
deslocou-se de onde? Deixo perpassar por mim a música de Satie, que o velho
gira-disco deixa escapar, temeroso de não descobrir esse locus original de onde
o corpo se tresmalhou. Sempre podia ir fumar um cigarro, mas fico-me pela
água que escorre da garrafa. É verdade, a palavra geografia, mesmo no plural,
sempre me fascinou, e dos fascínios o melhor é não haver pensamento.
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