Quando pus o carro a trabalhar, para sair da Maria Lamas, a
Antena 2 estava a dar um programa sobre os irmãos Grimm. Alguém referia, não
cheguei a saber quem era, a forma como os Grimm tinham tornado os contos
populares em algo mais aceitável para a moral da sua época. O exemplo usado foi
o da Branca de Neve. Originariamente, o conflito não era entre a madrasta
malvada e a bela e doce enteada, mas entre mãe e filha, provavelmente uma
rivalidade de tonalidade psicanalítica. A idealização, com a clara demarcação
entre o bem e o mal, por muito encantadora que possa ser, tem o vício de apagar
a experiência que o conto popular traria consigo. Olho para aquilo que me
envolve, para as pessoas por quem passo, para a avenida por onde encontro o
caminho de casa, e a tentação de envolver a realidade com o véu do encantamento
é grande. Os Grimm – e outros como eles – tiveram um enorme papel no treino para
nos tornarmos cegos. Não, uma mãe e uma filha não podem rivalizar, isso é
imoral. E, por isso, não há nada como esse exercício de cegueira que transforma
uma mãe numa madrasta. A realidade tem sempre um peso insuportável.