Enquanto me preparo para sair não me sai da cabeça o início
do fragmento 18 de Heraclito: “se não esperarmos o inesperado, não o
encontraremos”, traduzo, de memória, duma tradução francesa. Dupla traição. É
verdade que pela manhã deve haver coisas mais interessantes para pensar,
enquanto se toma o pequeno almoço ou se lava os dentes. Mas quem não sabe que
somos mais escravos dos nossos pensamentos do que seus senhores? E o Heraclito
e o seu malfadado fragmento lá calcorreiam entre os meus neurónios, ainda adormecidos.
Da janela, enquanto bocejo, avisto um Outono envergonhado e oiço o rumor
indiferente dos carros que passam. O fragmento caminha, caminha dentro de mim à
procura de um porto onde atracar. Por fim chega ao seu destino. Afinal, vivo
num país que sempre espera o inesperado, pois está sempre a encontrá-lo. Quando
a minha mão abre a porta de saída, hesito longamente. Também eu estarei à
espera do inesperado?