As horas deslizam sorrateiras e cravam-se na garganta para
nos sangrarem. Imagino então o sangue a deslizar, a empapar a roupa, enquanto
olho para a rua e vejo um gato à beira do passeio. Hesita longamente e, depois,
dá uma rápida corrida para o outro lado da avenida, enquanto um carro trava e
eu vejo tudo isso, imaginando o sangue a pingar no soalho, os minutos a passar
mais apressados que o gato. Se fosse possível libertarmo-nos do punhal do
tempo, medito sem esperança, tudo teria sentido. Um carro passa apressado,
buzina, e eu perco de vista o gato. É sempre assim, nunca deixamos de perder de
vista aquilo que é mais importante. Talvez chova mais logo, penso ao olhar o
céu cinzento.