Um repartição pública tem um ritmo muito próprio e, se
observado com atenção, muito regulado. Num tempo em que a sociedade e a
natureza se desregulam, há um nicho onde, apesar do aparato das tecnologias de
informação e da parafernália dos periféricos, a regularidade se impõe do abrir
ao fechar das portas. Contrariamente ao que se pode imaginar, a regularidade
pública não é sinónimo de lentidão. Quando hoje, por um daqueles afazeres a que
qualquer cidadão tem de se submeter, entrei numa dessas repartições e, depois de
tirar a senha, pensei que, com o pouco tempo disponível, o melhor seria ir-me
embora. A sala cheirava a mofo e tudo parecia tão lento que, com mais tempo,
num outro dia haveria de tratar do que ali me levara. Talvez algum anjo me
tivesse soprado ao ouvido, mas acabei por ficar por ali a observar a cadência
com que os séculos XVIII e XIX se arrastam em pleno século XXI. Imaginei-me
numa daquelas repartições por onde correu o processo que conduziu Joseph K. à
morte. A imaginação, porém, não é uma faculdade assisada e não hesita em
derramar fantasias e quimeras, quando não calúnias e vitupérios, no espírito do
incauto que a transporta. O mofo não tem a ver com a claustrofobia da
modernidade, constatei, mas apenas com a humidade e o excesso de pessoas, todas
apostadas em não deixar de respirar, num espaço pequeno. E meditando nisto ia
observando o ritmo com que tudo se desenrolava. Quando saí, de assunto tratado,
tinha passado uma escassa meia-hora, ritmada por um saber feito de séculos, num
Estado que encontrou há muito a sua cadência que, só na aparência, não coincide
com a nossa. Cheguei à rua e o sol brilhava e os raios reverberavam nos
passeios molhados. Meia hora, quem diria? E assim fui à minha vida.