Tive de ir fazer algumas compras. As pessoas embrulham-se
nos afazeres que a necessidade impõe, gratas pelo feriado, indiferentes à razão
que lhes permite estarem ali. Vejo gente conhecida há décadas, troco ironias e
amabilidades, desejamo-nos boa Páscoa, submetidos ao império do hábito, e cada
um segue o seu caminho. Chego à rua e o sol hesita entre esconder-se e brilhar,
deixo-me levar pela a aragem e penso que não há metáfora que nos permita
descrever aquilo que vemos nem metonímia que autorize um mortal a explicar a
realidade. Os carros passam e nesta constatação está todo o meu saber e toda a
minha cegueira. O dia desliza lentamente para dentro da cruz de um Cristo
abandonado na prateleira do supermercado.