Estava eu no café, tranquilo, a ler o jornal, quando oiço
alguém a despoletar. Eu sei que o prefixo des-
tem propriedades que o tornam errático nas bocas mais insuspeitas. É um prefixo
volúvel, inconstante, instável. Em suma, um cabeça no ar. Aquela mulher, talvez
por causa dos anéis que lhe cobrem os dedos ou das pulseiras que chocalham ao
vento, despoletou, tal como há quem destroque notas. De todas as leviandades do
prefixo, a que me causa mais engulhos é mesmo a do despoletar. Uma mania como
qualquer outra, a que se deve dar o devido desconto. Olhei para o telemóvel e a
aplicação que me controla o fitness –
meu Deus, a que graus de infâmia uma pessoa chega – pergunta-me se eu quero
aumentar de nível. Olho-a com desprezo. Ela insiste e propõe-me mais dez
minutos por dia de movimento. Em movimento? Levanto-me irritado com a sem-vergonha
da aplicação. Quem lhe terá dado confiança para fazer sugestões? Vou ao balcão,
peço para me destrocarem uma nota e despoleto o movimento que me há-de levar dali
para fora. Hoje é o quinto dia de Agosto e lembro-me de um verso de Eugénio de
Andrade: Ao inverno chega-se pela ausência de gaivotas.
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