segunda-feira, 5 de agosto de 2019

Despoletar

Estava eu no café, tranquilo, a ler o jornal, quando oiço alguém a despoletar. Eu sei que o prefixo des- tem propriedades que o tornam errático nas bocas mais insuspeitas. É um prefixo volúvel, inconstante, instável. Em suma, um cabeça no ar. Aquela mulher, talvez por causa dos anéis que lhe cobrem os dedos ou das pulseiras que chocalham ao vento, despoletou, tal como há quem destroque notas. De todas as leviandades do prefixo, a que me causa mais engulhos é mesmo a do despoletar. Uma mania como qualquer outra, a que se deve dar o devido desconto. Olhei para o telemóvel e a aplicação que me controla o fitness – meu Deus, a que graus de infâmia uma pessoa chega – pergunta-me se eu quero aumentar de nível. Olho-a com desprezo. Ela insiste e propõe-me mais dez minutos por dia de movimento. Em movimento? Levanto-me irritado com a sem-vergonha da aplicação. Quem lhe terá dado confiança para fazer sugestões? Vou ao balcão, peço para me destrocarem uma nota e despoleto o movimento que me há-de levar dali para fora. Hoje é o quinto dia de Agosto e lembro-me de um verso de Eugénio de Andrade: Ao inverno chega-se pela ausência de gaivotas.

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