quarta-feira, 21 de agosto de 2019

Do falhanço como obra de arte

Falhar a vida é uma tarefa meticulosa, um exercício contínuo que exige uma persistência sem limites. Apesar da péssima fama com que a turba, acicatada pelos funâmbulos do mérito, acolhe o falhado, este pode ser altamente criativo. Não é descabido pensar a falência existencial como obra de arte. O candidato a falhado pega na matéria da vida e trabalha com ardor sobre ela. Estica-a, encolhe-a, testa-lhe a plasticidade. Um golpe aqui, uma pressão acolá, um corte mais além. Sempre que suspeita um plágio, uma citação ou até uma mera referência, ele retorce a sua vida, até que a torna incompreensível. Nessa altura, quando a obra se torna inédita, de uma originalidade irrecusável, começam a sussurrar nas costas do artista do falhanço. Crescem os dedos acusadores. De tanto se alongarem, alguns destes dedos transformam-se em verdadeiros estiletes. Os sussurros são já a vozearia que a alcateia não consegue calar, mas como há quem se faça eunuco por amor do reino dos céus, também o falhado se faz surdo por amor da sua falência. Com o meu falhanço às costas, deixo que Setembro se aproxime e com ele me seja atirado à cara o daguerreótipo da minha vida. Há sonhos que se deveriam apagar mal acordamos, penso enquanto me preparo para ir ver como está o mundo lá fora.

2 comentários:

  1. E como estava o mundo lá fora?
    Viu muitos funâmbulos tentando manter o equilíbrio na corda bamba da vida?

    "C'est en Septembre
    que l'on peut vivre pour de vrai."
    cantava o Bécaud; será?
    Humm, pressinto que o Setembro ainda vai ser pior que o querido mês de Agosto.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Funâmbulos são coisas que não faltam, talvez sejam em maior número que as cordas bambas.

      É bem possível que Setembro se dê ares de Agosto. Nem em Outubro se está a salvo.

      HV

      Eliminar