Os dias continuam volúveis. Anunciam-se cheios de sol, mas logo se deixam seduzir pelo canto flébil das nuvens, cobrindo-se de uma luz anémica. A meio da manhã, ainda o dia estava exuberante, tive de sair para dar umas voltas urgentes e resolver alguns assuntos. A cidade, vista de dentro do carro, parece bem mais anémica do que o dia, havendo nela uma tristeza e melancolia que anunciam os dias do abandono, a rasura estrita da memória. O castelo, porém, com a estátua do rei que deu o foral, permanece vibrante, enviando a sua luz feita de séculos sobre as inquietações de quem por aqui vive. Na avenida marginal, vi alguns patos, mas não parei para ir espreitar o rio, para lhe saber o caudal e a disposição com que corre para os braços de um outro, bem maior e mais poderoso. Em todo o lado se vêem hierarquias, pensei, talvez sejam uma obra da natureza, apesar da palavra designar literalmente a autoridade do sagrado. Se me desse a especulações teológicas, não seria desagradável meditar na sacralidade da natureza ou na natureza do sagrado, mas esse dom não calhou no lote que me foi destinado. De súbito, um raio de sol fendeu o paredão de nuvens e caiu sobre uma oliveira da escola ao lado. A árvore cintila, dançando entre a cinza e a prata, enquanto o vento lhe faz tremer os ramos. Ao longe, um veículo pesado de mercadorias cruza-se com uma ambulância que arremessa para os ares fulgurações de azul, indicando a pressa que tem para chegar ao destino. Sentado, vejo tudo isso e penso que já faltarão pouco dias para o Outono se despedir. Então, constato que todos os meus pensamentos são puros e inúteis, e isso alegra-me.
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